Surtos de covid-19 alastram na indústria da carne e expõem trabalho sem condições
Nos EUA, Trump ordenou regresso dos trabalhadores às unidades de processamento apesar de o número de infectados ser já de milhares. Mas não é só um problema americano.
Na pandemia da covid-19, as unidades de processamento de carne, sobretudo nos Estados Unidos, estão a revelar-se um dos elos mais frágeis e foco de alguns dos surtos mais preocupantes. Em espaços onde os funcionários trabalham ombro com ombro, em condições muito difíceis e, até agora, com muito fracas medidas de segurança postas em prática, a situação tornou-se rapidamente dramática.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Na pandemia da covid-19, as unidades de processamento de carne, sobretudo nos Estados Unidos, estão a revelar-se um dos elos mais frágeis e foco de alguns dos surtos mais preocupantes. Em espaços onde os funcionários trabalham ombro com ombro, em condições muito difíceis e, até agora, com muito fracas medidas de segurança postas em prática, a situação tornou-se rapidamente dramática.
Com o alastrar exponencial do número de casos, muitas viram-se forçadas a fechar as portas. Mas, perante sinais de que o abastecimento de carne começava a ser afectado, o Presidente Donald Trump deu ordem para que reabrissem, invocando o Defense Production Act, uma medida para situações de guerra – na prática, considerando as fábricas de processamento de carne “infra-estruturas críticas” para a segurança nacional.
No seu editorial, o The New York Times classificou a medida como “perigosa e vergonhosa”, por colocar em risco a saúde de trabalhadores. “A saúde da nossa nação, física e económica, depende da segurança dos nossos trabalhadores”, defendeu o jornal.
A ordem de Trump surgiu depois de uma das maiores empresas do sector, a Tyson, ter pago anúncios de jornal para avisar que o encerramento de algumas das suas fábricas poderia levar a uma “limitação de abastecimento”. Na prática, a cadeia de hambúrgueres Wendy’s teve que alterar o menu por não ter carne suficiente e algumas grandes superfícies impuseram um limite nas vendas por cliente.
Na Europa também
Até agora registaram-se surtos de covid-19 em perto de 180 unidades de processamento de carne nos EUA. Mas o problema não é exclusivamente americano, está a afectar já a Irlanda, o Reino Unido, a Espanha, a Alemanha, a Austrália, o Brasil e o Canadá. Na Alemanha, por exemplo, uma fábrica de Birkenfeld registou 300 casos; na Irlanda o número de trabalhadores infectados ultrapassou os 500; em Espanha, numa fábrica de Aragão, 200 testaram positivo; e no Canadá, numa fábrica em Alberta, houve 949 casos. Há também registo de casos em Portugal, o mais recente na Azambuja.
No Brasil, que é o principal exportador mundial de carne de frango e vaca – a gigante JBS, que tem uma importante fatia do mercado mundial, é, na sua origem, uma empresa brasileira –, um relatório governamental citado pela Reuters indica surtos em nove unidades no Rio Grande do Sul e o risco de mais de 16 mil pessoas que trabalham nesta indústria terem sido expostas ao vírus.
A crise veio revelar publicamente uma situação para a qual alguns especialistas em segurança alimentar vinham já alertando: o sistema de processamento de carne em gigantescas unidades industriais representa um risco para a saúde, não só dos trabalhadores, mas também dos consumidores. E agora para a saúde pública.
Nos EUA, grande parte do problema tem a ver com a concentração deste negócio nas mãos de muito poucas empresas – nomes como JBS, Cargill, Smithfield ou Tyson – o que levou ao desaparecimento de matadouros e unidades de processamento mais pequenas. É um quadro, apesar de tudo, diferente do europeu, onde a concentração não é tão drástica. No entanto, se olharmos para o mercado global, o problema é evidente: em conjunto, os EUA, o Brasil e o Canadá dominam 65% do comércio mundial de carne, sublinha a Bloomberg.
Forçados a trabalhar
Nas autênticas linhas de montagem destas fábricas trabalham sobretudo imigrantes, que, sem protecção sindical ou outra, estão a ser chamados a voltar, mesmo depois de muitos colegas terem sido contagiados e dezenas terem morrido. Segundo o Midwest Center for Investigative Reporting, o número de casos em unidades de processamento de carne nos EUA já ultrapassou os dez mil, provocando pelo menos 45 mortes.
O The Guardian relata que em alguns casos os funcionários estão a receber pagamentos extra para regressarem. Mas muitos estão assustados e, por vezes sob anonimato, têm relatado aos jornalistas as condições em que se vêem forçados a trabalhar. Uma reportagem do diário britânico cita alguns destes trabalhadores nos EUA, que se descrevem como “escravos modernos” e falam em turnos de dez horas por dia durante os quais são abatidos 100 mil frangos.
As idas à casa-de-banho acontecem à mesma hora, o que faz com que haja “centenas de pessoas” em filas à espera, conta uma das funcionárias. Além disso, fora do horário de trabalho, grande parte destes trabalhadores partilha habitações comunitárias, o que também terá contribuído para o rápido espalhar da doença.
A fama desta indústria é má desde o início do século XX, quando, em 1906, o jornalista Upton Sinclair chocou o país descrevendo-a no livro The Jungle. Mas, afirma no The Conversation o sociólogo Michael Haedicke da Universidade de Drake, houve em meados do século um momento em que, com a união dos trabalhadores brancos e negros, o poder reivindicativo destes tornou-se maior.
A situação recuou novamente a partir dos anos 70, segundo Haedicke, com uma mão-de-obra crescentemente precária, composta muitas vezes por imigrantes ilegais e refugiados, e cada vez mais explorada em nome da maior eficácia da produção, cujo ritmo não tem parado de aumentar
Para além do problema da concentração do processamento, existe nos EUA outro factor que ajuda a explicar a ansiedade que esta crise está a provocar nos consumidores: a alimentação dos norte-americanos baseia-se muito em carne, com um consumo de mais de 90 quilos anuais per capita.
Esta carne é um risco
Um artigo do Vox chama a atenção para o duplo perigo de uma dieta essencialmente carnívora e das falhas no sistema de produção, com o autor, Sigal Samuel, a defender que “a carne que comemos é também um risco pandémico”. “Nestas enormes unidades industrializadas das quais provém mais de 90% da carne consumida no mundo – e cerca de 99% da consumida na América – os animais estão em cima uns dos outros e vivem em condições duras e com problemas sanitários.”.
Estas unidades de produção são – à semelhança dos wet markets da China, onde terá começado a pandemia do novo coronavírus – um lugar ideal para surgirem outros vírus com o mesmo potencial letal, além de contribuírem para outro problema, igualmente grave, que é o aumento da resistência aos antibióticos nos casos de infecções bacterianas.
Samuel explica que, dada a quantidade de antibióticos usada para manter os animais resistentes às muitas doenças que os ameaçam, quando os humanos tentam tratar uma infecção recorrendo a um antibiótico, muitas bactérias mostram-se já resistentes e o medicamento revela-se inútil. Daí que, conclui, todo o sistema seja “um enorme factor de risco de pandemias”.