Usar o que se aprendeu a sobreviver à tortura para enfrentar uma pandemia
Frederic contou à Médicos Sem Fronteiras como está a fazer uso do que aprendeu ao recuperar da tortura que sofreu para lidar com o confinamento e a ameaça da covid-19 no campo de refugiados onde vive.
No início desta saga do novo coronavírus, achei que tudo estaria terminado em uma semana ou duas. Mas, após saber mais sobre a doença e como estava a propagar-se, percebi que era algo muito mais grave do que pensara.
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No início desta saga do novo coronavírus, achei que tudo estaria terminado em uma semana ou duas. Mas, após saber mais sobre a doença e como estava a propagar-se, percebi que era algo muito mais grave do que pensara.
A contagem dos mortos disparou de um dia para o outro. Não julgara que fosse possível e causou-me muito stress. Quando o número das mortes chegou às 600-700 na Itália e em Espanha, a cada dia, senti um duro impacto psicológico. Lembro-me que tive de falar com o meu psicólogo porque fiquei mesmo muito assustado.
Ouvi histórias de pessoas que se encontravam de boa saúde num dia e no seguinte tinham morrido. Médicos e outros profissionais de saúde, também, estavam a ser vítimas da doença, que parecia destruir tudo no seu caminho.
Depois, o Governo grego anunciou o fecho dos campos. Tive de permanecer dentro do campo e parar de trabalhar – o meu patrão pediu-nos a todos que deixássemos de ir trabalhar. Compreendi aí que a doença teria um enorme impacto para mim. Passei muito tempo só a pensar na doença: quando acabaria, se eu e pessoas que me são próximas morreríamos na pandemia.
Pensava nisto uma e outra vez, cada vez mais. Comecei a ter muitos pensamentos maus, eram muitas coisas que me passavam pela cabeça e que começaram a despertar em mim más memórias. Já tinha sofrido tanto e agora parecia que o sofrimento iria começar de novo. Perguntava-me como é que eu conseguiria escapar desta vez.
Já passei por tortura antes de deixar o meu país e atravessar o mar. Já vivi um tempo em que estive muito doente e me preocupei com o meu futuro. Passei por tudo isso e depois, graças a Deus, após um logo período de tratamento médico, recuperei.
Depois de ter recuperado, disse a mim mesmo que usaria essas experiências do meu passado para me ajudarem a lidar com a pandemia. Compreendi que as dificuldades pelas quais passei foram muito maiores do que esta pandemia. Foi assim que me convenci a mim mesmo de que o fecho dos campos e o confinamento aqui dentro não me impediriam de superar tudo isto.
O único momento em que o medo me domina é quando estou fechado no meu contentor. No campo vivemos umas cinco ou seis pessoas em cada contentor. Sei que não posso proibir ninguém de lá entrar para ver outra pessoa que também ali vive e não tenho outra opção se não a de gesticular para que mantenham a distância. É tudo o que posso fazer.
Não temos alternativas — este é o único lugar que temos para viver. E, ao mesmo tempo, temos consciência de que há outras pessoas com muito maiores necessidades, pessoas que têm ainda menos espaço; assim, temos de fazer o melhor que conseguimos com o espaço limitado de que dispomos.
Sinto que tenho sorte por, pelo menos, estar num campo, com um lugar para viver. Também temos um estádio onde podemos ir fazer exercício. Por isso estou numa situação melhor do que as pessoas que se encontram confinadas em apartamentos sem espaço para se exercitarem.
Encontro-me em processo de recuperação dos ferimentos que sofri num joelho, devido ao que passei no meu país. As minhas consultas médicas foram interrompidas devido à situação presente, mas o meu médico telefona-me com frequência para saber como estou.
Sei que o planeta todo está a passar pelo mesmo, mas o que difere para nós, refugiados, é que as nossas condições de vida, combinadas com o confinamento e a ameaça do vírus, impõem um stress duplo.
É difícil não ter com quem conversar. Quando não temos à nossa volta pessoas em quem podemos confiar, não é fácil sentirmo-nos descansados, tranquilos. A minha psicóloga, Zoe, é uma das poucas pessoas com quem posso realmente falar. Desde que o confinamento começou, falo com ela quase todas as semanas.
Gostava de agradecer às equipas da MSF pela ajuda que nos dão, porque não é nada fácil. Faz toda a diferença ter este apoio, nem conseguem imaginar.
* nome alterado para protecção de identidade