A Nos e o erro de falar por nós
A mensagem do novo anúncio da Nos é míope por presumir uma empatia que não existe. Chega a ser soberba, por achar que pode falar, num anúncio empresarial, em nome de quem não representa.
Há uns dias, quando abri o YouTube para ouvir uma música, dei por mim novamente irritada. A guitarra portuguesa da nova campanha da Nos disparou sem pedir outra vez e eu apressei-me a clicar na opção “saltar o anúncio”, incomodada com a invasão da marca ao meu espaço. O que me irrita tanto nesta publicidade? Serei a única que se irrita com ela?
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Há uns dias, quando abri o YouTube para ouvir uma música, dei por mim novamente irritada. A guitarra portuguesa da nova campanha da Nos disparou sem pedir outra vez e eu apressei-me a clicar na opção “saltar o anúncio”, incomodada com a invasão da marca ao meu espaço. O que me irrita tanto nesta publicidade? Serei a única que se irrita com ela?
Passados alguns dias, deparei com uma montagem da página do Facebook Por Falar Noutra Coisa, do humorista Guilherme Duarte, em que o mítico Zé Tolo reclama, entre outras coisas, que está “cheio” de ouvir Mariza, perante centenas de partilhas e comentários. “E eu que julgava que era só a mim que esta publicidade punha os nervos em franja”, lê-se num comentário. “Só espero que a covid-19 veja o anúncio, pois assim não irá durar muito tempo”, diz outro.
Há também quem goste do anúncio, como confirmei na página do Facebook da Nos. Legitimamente! Não pretendo com este texto fazer uma leitura absoluta, ser hater ou promover o maldizer. Esta é apenas uma proposta de interpretação subjectiva sobre o que poderá estar na origem da aversão que alguns sentem pelo anúncio.
Há uma série de aspectos que me parecem estar na origem desta irritação. O primeiro é a intensidade com que a campanha é veiculada. São muitos os que se queixam da excessiva presença da música e do vídeo, seja no YouTube ou na televisão. O que é demais, cansa: “Até eu que gosto da Mariza já não aguento”, reclama outra internauta. O segundo poderá ter que ver com alguma animosidade em relação a Mariza, que eu não fazia ideia que existia, com alguns a verem nas alegadas plásticas um bom motivo para enxovalhar. Mas, na minha opinião, não é isso que irrita. O anúncio, independentemente da intensidade da veiculação ou do apreço pela protagonista, já pecava pela mensagem.
A narrativa é relativamente simples: faz uso de símbolos da identidade portuguesa para deixar uma mensagem de união nestes estranhos dias de pandemia. Imagens de lugares icónicos de Portugal vazios, como a Avenida dos Aliados ou a Ponte de Luís I, cruzam-se com as de famílias portuguesas em casa, ao som de um fado melancólico que canta a “saudade”. A marca apropria-se destes elementos patrióticos, explora a sincronia entre o seu próprio nome e o significado da palavra “nós” e fala, assim, em nome dos portugueses: “Todos juntos, seremos nós.”
A mensagem é míope, por presumir uma empatia que não existe. Chega a ser soberba, por achar que pode falar, num anúncio empresarial, em nome de quem não representa. Há uma falta de coincidência entre aquilo que a Nos é para muitos portugueses – em certos casos, como voltei a confirmar nas redes sociais, as associações à marca são negativas – e aquilo que de mais profundo compõe o “nós” português colectivo. Ao falar por nós, no que de mais visceral nos identifica, a marca comete um erro. A Nos está longe de ser o mesmo que nós. Irrita porque, à semelhança de outras irritações, toca num ponto sensível, num momento de acrescida fragilidade social. Toca no que não lhe pertence.
Fico a pensar se a irritação seria a mesma caso o anúncio fosse do Governo de Portugal ou da Selecção Portuguesa, instituições que nos identificam colectivamente. É possível que, nesses casos, a campanha não tivesse sido polémica. Era essa aceitação em massa que a Nos certamente esperava, considerando tão grande investimento numa campanha institucional sem retorno financeiro imediato, em tempos de crise económica.
Reforço também a convicção do poder das mensagens, dos símbolos e do potencial de empatia ou de aversão que a publicidade comporta. Continuo a achar que as marcas podem e devem falar connosco. Mas têm de ter muito, muito cuidado ao falar por nós.