Alegoria das cavernas
O negro e o cigano podiam até dar bons chutos, mas para comentar já cá estava o branco. Era assim a ordem natural das coisas. Os outros brancos ouviram; uns calaram-se, alguns anuíram, outros escreveram textos como este.
Estava um negro, um cigano e um branco a olhar para uma bola.
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Estava um negro, um cigano e um branco a olhar para uma bola.
O negro competia numa equipa, isto é, na companhia de dez outros mamíferos, contra outros onze. Tinha um corpo pujante, mas infelizmente nem sempre a sua agilidade andava comprometida com a bola, o centro, afinal, de todas as atenções. Mas naquele dia não foi assim; passava cerca de uma hora, um companheiro lançou-lhe uma bola em profundidade (não que o relvado fosse um abismo; trata-se de uma figura de estilo), o negro viu bem onde ela ia parar, correu o mais que podia, tocou elegantemente no esférico com o pé, enganou os outros hominídeos que o rodeavam, e chutou com toda a força. A dita bola só parou no fundo de umas redes presas a dois postes e uma trave. O negro pôs-se a celebrar. Mas os outros primatas que assistiam ao jogo, na sua maioria de aparência pálida e farta barriga, não gostaram da brincadeira, porque a bola entrou nas redes erradas, e começaram a imitar sons de macaco, animal que, confusamente, também é um primata. A ideia subjacente era a de que o negro estava mais próximo do primata peludo do que eles próprios, mais ou menos brancos, e bastante mais peludos. E como, para eles, os macacos são inferiores ao homem, quem marcou o “golo” era – mercê da mais subtil das ironias – inferior aos mamíferos de pele branca. O negro irritou-se e não quis jogar mais. Os colegas agarraram-no, o público ululava, mas ninguém o convenceu a manter-se em campo. E foi-se embora.
O outro, o cigano, também era jogador. Há milhares de anos, os seus antepassados decidiram que não viveriam mais no norte da Índia, e viajaram para onde o sol se põe, na companhia de familiares e conhecidos. Eram já refugiados, provavelmente. Vários séculos depois, vieram dar a um beco sem saída: o oceano atlântico. Continuar, só de barco. Alguns partiram, outros ficaram. O cigano descende dos que permaneceram, e por isso estava naquele estádio, naquele dia, naquela “selecção”, isto é, na equipa onde se concentravam os hominídeos de género masculino que melhor jogavam à bola dentro de uma mesma porção de terra, delimitada algo arbitrariamente por vários acasos históricos. Era também ele ágil e veloz, e uma particularidade o distinguia: o pé direito fazia a bola descrever um arco perfeito e imaginário, até entrar num dos cantos da tal coisa com redes lá dentro; e enquanto quase todos faziam isto com a parte interna do pé, o cigano fazia-o com a parte exterior, algo que causava um arrepio emocionado em quem gosta de apreciar trajectórias de esferas, como os astrónomos, por exemplo. E assim foi no primeiro golo que marcou pela tal selecção. Olhou para a bola, recebeu-a com o calcanhar, ludibriando um outro mamífero pálido que lha tentava tirar, chutou com a parte exterior do pé, e catrapum, lá foi disso. Um monumento. Uma onomatopeia.
Havia também um branco a olhar para uma bola, mas não consta que tocasse nela. Com certeza tentou o seu ocasional chuto, mas nunca com a arte do negro ou do cigano. Mas como gostava de ver a bola rolar, ficou nas bancadas a “comentar”, isto é, a “mandar bitaites”, e começaram-lhe a pagar para isso. Tanto comentou que o puseram numa sala a falar para uma câmara; o branco tinha sempre o dedo em riste e defendia com bravura uma equipa vermelha, formada por negros e brancos (sem ciganos, ao que parece), contra interesses verdes e azuis. Por fim foi dar a um hemiciclo. Porquê? Não tinha vergonha de dizer “o que todos pensavam”, isto é, alguns brancos. Nessa altura já não comentava só os golos, mas negros e ciganos. Opinou sobre o negro que saiu do campo. Achou exagerado o gesto; interpretaram mal os gritos de macaco dos primatas brancos e peludos. Opinou sobre os ciganos. Ao que parece, andam para aí a contagiar tudo e todos com um vírus novo que surgiu num país de gente amarela. Era preciso leis mais robustas para os ciganos, mais discriminatórias. O cigano que chuta como um deus pagão achou tudo aquilo de um terrível mau gosto, vagamente absurdo. Escreveu um texto articulado, que defendia alguns dos valores de um outro homem nascido na Judeia, de tez provavelmente mais perto do negro do que do branco. O branco não respondeu: mandou o cigano calar-se; ou melhor, pediu que o fizessem calar. O negro e o cigano podiam até dar bons chutos, mas para comentar já cá estava ele. Era assim a ordem natural das coisas. Os outros brancos ouviram; uns calaram-se, alguns anuíram, outros escreveram textos como este.