Deixem as magras em paz
As vozes feministas, as do body acceptance, desta vez ficaram todas bem caladinhas. Nada, nem um pio, nicles, zero absoluto. Um silêncio tão profundo que chega a tornar-se ruidoso.
Podia começar esta crónica com praticamente qualquer um dos quase duzentos e trinta mil comentários da última publicação da cantora Adele no Instagram. Ou podia pegar nas palavras de uma das grandes líderes do chamado “fat acceptance movement” e provar como são ridículas e perigosas. Mas acho que prefiro limitar-me a gritar as palavras que tenho presas na garganta há já algumas horas. E sabem que palavras são essas? Deixem as magras em paz.
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Podia começar esta crónica com praticamente qualquer um dos quase duzentos e trinta mil comentários da última publicação da cantora Adele no Instagram. Ou podia pegar nas palavras de uma das grandes líderes do chamado “fat acceptance movement” e provar como são ridículas e perigosas. Mas acho que prefiro limitar-me a gritar as palavras que tenho presas na garganta há já algumas horas. E sabem que palavras são essas? Deixem as magras em paz.
Bolas, chega a ser incrível a forma quase leviana como toda a gente se acha no direito de opinar sobre a magreza dos outros. Expressões como “está feia de magra” fazem parte do vocabulário de metade do mundo e pouca gente pára um minuto para pensar que ouvir este tipo de comentário magoa. É quase como se as magras tivessem de ser imunes ao insulto alheio e o mais idiota é que, sempre que alguma tenta meter o dedo na ferida, vem uma turba inteira de archotes na mão e discurso pronto na lógica do “devias ser gorda para veres o que é sofrer”.
Adele perdeu 45 quilos. Não sei se cumpriu alguma dieta maluca ou se manteve apenas uma dieta mais equilibrada, não sei se fez exercício físico até ao infinito e mais além ou se manteve um plano de treino coerente, não imagino sequer se recorreu a medicação ou a procedimentos cirúrgicos. O que sei é que a cantora tem 32 anos, um filho pequeno, e decidiu emagrecer. Só que esse emagrecimento incendiou a Internet e as ofensas têm chovido com uma intensidade tal que aposto que, neste momento, todos os Noés do mundo estão a verificar o casco das arcas e a seleccionar os casais de animais para meter lá dentro.
E sabem o que é mais estúpido? É que as vozes feministas, as vozes do body acceptance, desta vez ficaram todas bem caladinhas. Nada, nem um pio, nicles, zero absoluto. Um silêncio tão profundo que chega a tornar-se ruidoso. Convido-vos a imaginar se fosse ao contrário, se Adele tivesse engordado 45 quilos e estivesse a ser trucidada por isso nas redes sociais. Quanto é que apostam comigo que já havia toneladas de publicações por essa Internet fora a defender a cantora e a promover a aceitação corporal, o body positivity e mais o diabo a quatro?
Reparem, eu já estive muito, muito magra. Tinha doença celíaca e não sabia. Vi o meu peso, na época tendencialmente baixo, afundar a pique, e nem me apetece lembrar as barbaridades que ouvi. Porque, acreditem em mim, nunca ninguém se coibiu de me lembrar de coisas extraordinárias como “vêem-se os ossinhos todos” ou “o teu namorado, coitado, nem tem onde agarrar”. E ai de mim que me queixasse, que as magras não se podem queixar porque elas sabem lá o que é sofrer. Hoje em dia tenho o chamado “peso normal”, com um índice de massa corporal saudável, mas sempre que me dispo em frente ao espelho continuo à espera de ver a marca das costelas. É, há coisas que ficam para sempre.
Para terminar, e voltando à cantora inglesa, não tenho nenhuma dúvida que ganhou saúde, que melhorou a condição física e a auto-estima e que, acima de tudo, deve estar orgulhosa do que conseguiu. E é uma pena que os de sempre, os que são fracos na realidade, mas fortes armados com um teclado, por lá andem a escrever em maiúsculas que ela estava muito mais bonita obesa, que parece que envelheceu 30 anos, que está exageradamente magra (coisa que, de facto, não está) e que, para eles, esta transformação foi uma desilusão.
Já para mim, fiquem sabendo, desilusão é vivermos em 2020 e esta gente ainda não conseguir calar a boca quando o assunto é o corpo alheio. E acabo da mesma forma que comecei: a pedir que, de uma vez por todas, deixem as magras em paz. E as gordas também, já agora. Se não são nossos médicos, se não são nossos pais, se não são os nossos melhores amigos, então metam-se na vossa vidinha e fiquem de biquinho calado. Até porque, em boca fechada, não há registo de alguma vez ter entrado mosca.