Direitos Humanos: da emergência à calamidade
Os poucos refugiados e requerentes de asilo que Portugal recebeu viveram experiências traumáticas. Quando chegaram a Portugal, esse suplício continuou. Para estas pessoas, viver em estado de calamidade não é novidade.
“Nada do que é humano me é indiferente”
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
“Nada do que é humano me é indiferente”
Atribuída ao dramaturgo e poeta cartaginês Públio Terêncio Afro, esta ideia mostra que, já na antiguidade clássica, aqueles que tratavam a arte com familiaridade percebiam que tudo aquilo que diz respeito ao ser humano está ligado, é inseparável e inalienável.
Os direitos humanos são assim mesmo, indivisíveis, relacionam-se uns com os outros. No estado de emergência que vivemos em Portugal, vimos muitos direitos humanos suprimidos temporariamente pelo bem de um outro mais urgente – o do direito à saúde.
Partimos agora para outra fase, da emergência à calamidade, e os desafios são semelhantes. Até porque esta pandemia veio escalar muitos problemas de direitos humanos que já existiam, colocando em maior vulnerabilidade todas as pessoas que viviam nessas circunstâncias de pobreza e discriminação.
Há dois invernos estive na fronteira entre a Hungria e a Sérvia. Lá conheci refugiados com diversas proveniências geográficas: Síria, Iraque, Afeganistão ou Paquistão. Eram sobretudo jovens, como os nossos de meados do século XX que partiam primeiro a salto para França, para os Estados Unidos, para o Brasil ou para a Venezuela. Só depois se lhes juntava o resto da família. Conheci-os cheios de sonhos, mas estes já a darem lugar à falta de esperança. Viviam em tendas rodeadas de neve e frio cortante.
Lembro-me de um rapaz que vinha do Afeganistão. Um dia prometeram-lhe trabalho e uma vida maravilhosa na Europa, e mostraram-lhe fotografias impressas muito bonitas do destino. O seu pai era polícia, aposentado, e vendeu o único terreno que tinha para que o filho fosse estudar para a universidade no país natal. O filho falou-lhe da Europa e o pai deu-lhe a escolher: os estudos perto de casa ou migrar. As poupanças que conseguira, serviriam para lhe providenciar esse início de vida que ele escolhesse.
Seguiu viagem. Os traficantes deixaram-no a meio caminho, sem dinheiro, sem nada. Tinha-lhes dado tudo para a viagem que ficou a meio. Não sabia para onde ir, nem tinha como regressar a casa. Já tinha tentado passar para Hungria por três vezes, mas ele e outros eram apanhados pelos guardas fronteiriços, que com cães e bastões os atacavam, batendo-lhes com os cassetetes em cheio nos joelhos para lhos partirem e não conseguirem andar, fugir e não tentarem mais a travessia.
Histórias como a deste jovem serão muitas e idênticas às que outros refugiados e migrantes viveram no Mediterrâneo, onde já morreram tantas pessoas, ou mesmo na Líbia, onde aqueles que fogem da miséria ou da guerra são apanhados, presos, torturados e vendidos como escravos, entre outras proveniências e pontos de passagem.
Os poucos refugiados e requerentes de asilo que Portugal recebeu terão cada um deles e cada uma delas uma história trágica para partilhar. O Conselho Português para os Refugiados e outras instituições têm feito o que podem para os acolher e, por já não terem capacidade nas suas instalações, procuram alternativas. Os hostels de que todos ouvimos falar há alguns dias são algumas.
Os sucessivos cortes, de meios humanos e materiais, que vêm acontecendo desde os anos da austeridade nos serviços da administração pública, da educação e da saúde, fizeram diminuir a capacidade de acolhimento e tratamento dos casos destas pessoas (e de tantas outras). Apesar de alguns decretos bondosos, estes esbarram depois na realidade, onde há pouca capacidade de resposta e despacho. Se tivessem mais, talvez refugiados e requerentes de asilo já não precisassem de estar num hostel sem condições e à mercê de uma pandemia. Já poderiam estar integrados na sociedade, a contribuir com impostos do seu trabalho para o nosso país, a partilhar a sua diversidade cultural, a protagonizar gestos tão significativos como servir refeições gratuitas a profissionais de saúde, como foram exemplo Ramia Abdalghani e Alan Ghumim, refugiados sírios em Portugal e proprietários de um pequeno restaurante em Lisboa.
Assim, continuam à espera, num limbo. A maior parte destas pessoas viveu experiências traumáticas. Quando chegaram a Portugal, esse suplício continuou. Para estas pessoas, viver em estado de calamidade não é novidade.