Reflexões para o futebol. Carta aberta ao presidente da FPF
Caro Dr. Fernando Gomes,
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Caro Dr. Fernando Gomes,
Atento ao seu artigo de esta segunda-feira, publicado em diversos órgãos de informação, e seguindo o seu desafio para promovermos uma reflexão alargada, concordo consigo de que é tempo de reformularmos o futebol em Portugal.
Permita-me, no entanto, procurar ser pragmático e encarar a realidade, sem subterfúgios e indo directamente às questões que considero relevantes.
Uma delas prende-se com a incoerência do financiamento, do enquadramento legal das verbas dos jogos sociais, e a sua distribuição aos clubes de futebol.
O futebol necessita de um modelo de financiamento que corrija as iniquidades históricas existentes e as incoerências do enquadramento legal actual, aprofunde a incorporação dos benefícios económicos directamente para os clubes de futebol construírem academias de formação, indo para além do paradigma patente na Lei de Bases da Actividade e do Financiamento do Desporto, de financiamento indexado aos lucros das apostas sociais.
Infelizmente, ainda vivemos muito uma tradição subserviente e assistencialista.
A reformulação do modelo de financiamento que vigora há décadas e que se baseia no Fundo de Fomento do Desporto que existiu até aos anos 90, gerindo os montantes recebidos dos Jogos Sociais da Santa Casa da Misericórdia é urgente e deve agora ser objecto de implementação e revisão.
Este modelo foi regulado, sendo que na actualidade a gestão financeira tem uma dimensão quase meramente administrativa, perdendo a capacidade de intervenção directa e as características iniciais do Fundo do Fomento do Desporto, descurando as especificidades e natureza dos clubes de futebol, e no apoio que estes necessitam para estruturarem as suas academias de formação.
O DL 56/2006 de 15 Março define o enquadramento legal da distribuição das receitas provenientes dos jogos sociais, e o DL 67/2015 de 29 Abril, o regime jurídico da exploração e prática das apostas desportivas à cota territorial, regulado pela portaria 315/2015 de 30 Setembro, que fixa as condições de atribuição do montante da receita objecto da aposta a atribuir às entidades, a repartir pelos clubes ou pelos praticantes e pela federação que organize o evento.
O que é sintomático e incoerente, neste enquadramento legal, é o facto do futebol, enquanto gerador da receita de alguns ( se não a maior parte ) dos jogos sociais, não tenha o retorno correspondente, não só na sua importância social, mas pelo menos à importância instrumental de veículo de geração de receitas, a redistribuir pelos clubes para construírem academias de formação.
Somente 10.29 % das receitas geradas são redistribuídas para o ministério de educação, que tutela o desporto, sendo destes somente 8,87% transferidos para o Instituto Português do Desporto e da Juventude, para o fomento e desenvolvimento de actividades e infra-estruturas desportivas.
Parte desta verba foi usada para assumir o processo de fusão, no âmbito do Plano de Redução e Melhoria da Administração Central do Estado, com a incorporação numa única entidade, do Instituto do Desporto de Portugal, I.P., o Instituto Português da Juventude, I.P. e, por dissolução, a Fundação para a Divulgação das Tecnologias de Informação e é actualmente usada para financiar outras redundâncias necessárias ( ou desnecessárias ) com a diminuição do orçamento de estado para a despesa estrutural, como a dívida herdada e mapa de pessoal de dirigentes e trabalhadores.
Seria da mais elementar justiça que se promovesse, juntamente com as restantes entidades, um acordo para o aumento percentual das verbas para o futebol, exclusivamente para os clubes construírem academias de formação. Cada 1% de aumento pressupõe um reforço de cerca de 5 milhões de euros.
Outra alteração necessária prende-se com a distribuição das receitas directas da exploração e prática das apostas desportivas à cota territorial, nos termos da lei (67/2015) que determina que somente 3.5% das mesmas sejam atribuídas às entidades objecto da aposta a repartir pelos praticantes, consoante o caso, e pela federação que organize o evento, incluindo as ligas se as houver. A necessidade de, também neste âmbito, procurar em sede legal uma justa proporcionalidade contribuindo para o modelo de financiamento do futebol em Portugal, novamente para a construção de Academias de Formação, aumentando este valor para uma cota territorial maior.
É necessário um novo modelo de financiamento alternativo para o futebol, na sua componente para a construção de academias de formação, se queremos inverter este ciclo.
A possibilidade de se criar um fundo para o futebol, através duma nova política pública desportiva, que permita aos clubes desenvolver actividades não remuneradas pelo mercado, e criar exclusivamente Academias de Formação para todos os Clubes, para que a política desportiva pública considere prioritárias promover socialmente, e cujo custo seja incomportável financiar através do mercado privado (financiamento bancário e outros) podendo, desta forma, fazer face aos custos de qualidade do desenvolvimento desportivo do futebol em Portugal, ao desejado equilíbrio financeiro e às dificuldades que surgirão seguramente depois deste período de confinamento, e das implicações que já se fazem sentir em todos os clubes de futebol dos diversos escalões.
A realidade que temos vivido, suportada num modelo que importa alterar, permitiu à Federação Portuguesa de Futebol viver um período áureo, onde os resultados desportivos alcançados pela selecção nacional foram muito mais fruto do esforço que os clubes fizeram para formar e capacitar os seus jogadores, do que da política pública de apoio ao futebol.
Criou-se efectivamente um modelo que praticamente tem vindo a “secar” as fontes alternativas de financiamento dos clubes, com a complacência (ou conivência) da Federação Portuguesa de Futebol, que olhou só para o curto prazo, que apoiou a criação dum quadro competitivo que praticamente só pensou nas receitas que a própria federação e os grandes clubes que participavam nas competições europeias poderiam gerar e, diga-se em abono da verdade, permitiu que a regulação, que deveria ser o principal foco de qualquer federação desportiva, passasse para plano secundário.
Não importa aqui e agora entrar num processo de críticas (ainda que possam ser sempre construtivas) para dissecar o estado em que se encontra o futebol, e a relação da federação com os clubes em Portugal.
Será seguramente um tema para debate interno que deveremos estar todos disponíveis para realizar, sem exclusão de qualquer interveniente, por muito que possamos discordar de algumas posições, para que se possa exigir que o estado português passe a olhar para a indústria do futebol, e para a modalidade amadora, com respeito e consideração, a bem do futebol português.