Outra vez um “novo normal”?
O desafio, para todos, está em tudo fazer para que este “novo normal” seja verdadeiramente o “novo normal”, aquele que afinal vem sendo há muito apregoado e sistematicamente adiado…
Vivemos um tempo de complexos desafios e de enormes incertezas quanto ao que o futuro nos reserva. Neste cenário de muitas dúvidas e poucas ou quase nenhumas certezas, tendemos sempre a providenciar, de forma habilidosa refira-se, por rótulos pomposos para etiquetar o desconhecido, o que não conseguimos controlar e, por essa via, a melhor nos confortar o ego.
A verdade faz-nos mais fortes
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Vivemos um tempo de complexos desafios e de enormes incertezas quanto ao que o futuro nos reserva. Neste cenário de muitas dúvidas e poucas ou quase nenhumas certezas, tendemos sempre a providenciar, de forma habilidosa refira-se, por rótulos pomposos para etiquetar o desconhecido, o que não conseguimos controlar e, por essa via, a melhor nos confortar o ego.
Procuramos desse modo, quase que inconscientemente, falar um pouco de tudo, como se em tudo fossemos uma verdadeira “autoridade na matéria”.
Faz-me lembrar aquela velha história, mas que o tempo persiste em manter viva na minha memória, que ouvi há muitos anos sobre uma célebre prova oral na Faculdade de Direito de Lisboa em que o professor arguente, vendo que o tempo passava e que o aluno tardava em encontrar os artigos do código para responder à pergunta que lhe fizera, se lhe dirige em tom irónico, dizendo “Oh homem, você está há tanto tempo à procura da resposta que mais parece um polícia atrás do ladrão…!!” ao que o aluno, educadamente, retorquiu, dizendo “Quer V. Exa. dizer, senhor Professor, que sou uma autoridade na matéria?....”
O resto, como compreenderão, dispenso-me de contar, deixando à imaginação pródiga dos meus queridos leitores…!
Estamos, se me permitem a analogia com tão eloquente história, como esse aluno, qual “Vasquinho da Anatomia” na célebre Canção de Lisboa, pois se é verdade que procuramos respostas e nos julgamos todos umas “autoridades na matéria”, também não é menos verdade que, no final do dia, pouco ou nada sabemos sobre o que de facto por aí vem.
Fala-se, a esse propósito, no advento de um “novo normal”, sem que saibamos muito bem o que é que isso verdadeiramente significa. Percebe-se globalmente a ideia, fica bem e, verdade seja dita, sempre diz qualquer coisa de “novo” para nos manter viva a chama e otimistas perante o dia de amanhã.
A verdade é que a expressão “novo normal” é usada, pelo menos, desde os anos 70 nas ciências exatas, sendo desse modo exibida, um pouco por todo o lado, como implicando um conjunto de mudanças súbitas e, sobretudo, não reversíveis numa dada realidade.
No entanto, foi apenas na sequência da crise financeira global de 2009 que Mohamed El-Erian, um influente analista norte-americano e então conselheiro do Presidente Barack Obama, sugeriu a noção de um “novo normal” para caraterizar o mundo que surgiria então no pós-crise. Um mundo em que não mais se retrocederia à hegemonia e domínio das economias ocidentais e em que se conseguiria antecipar, desde logo, um estimulante e agregador quadro de desenvolvimento económico dos Estados e de um intenso e desejável incremento tecnológico.
Também nós, por terras lusas, tivemos já a extraordinária oportunidade de tomar o pulso a esse então também denominado “novo normal”, motivado, sobretudo, pela aprendizagem imposta pela última e sofrida experiência de assistência financeira. Já no pós-troika, em ambiente de descompressão e com os olhos postos no futuro, tivemos também o enorme privilégio de beneficiar do magistral bloco de episódios intitulado, precisamente, “O novo normal”, conduzidos por Fernando Ilharco e em que connosco partilhou, de modo desassombrado, as suas reflexões sobre itens tão diversos para um futuro mais promissor, como a iniciativa para a mudança, o talento, ou mesmo a motivação e criatividade numa era profundamente digital.
Servem estes diferentes e ilustrativos exemplos de “novo normal” da nossa história recente para dizer que nada de novo há no «novo normal» que todos, de uma forma ou de outra, já bem conhecemos de outros “carnavais”…
Voltámos, sem que disso provavelmente muitos se tenham apercebido, a ter um “novo normal” ou, como eu prefiro chamar, uma nova oportunidade.
E isso, permitam-me, não é de somenos importância.
É-nos dada uma vez mais, é certo que por diferentes razões, a oportunidade de poder fazer diferente, de poder fazer melhor, de modo mais inclusivo e solidário para todos, sem exceção.
E esse é talvez o grande desafio, o tremendo sobressalto cívico a que temos que saber dar respostas lúcidas, esclarecidas, pacificadoras e, sobretudo, capazes de gerarem alargados consensos sociais por parte da sociedade nas suas mais diferentes dimensões.
Todos somos interpelados para esse novo “novo normal”, uma espécie, refira-se, de remake do pós-crise financeira, agora sob a forma de uma terrível crise sanitária provocada por um não menos hediondo vírus à mistura, certamente para baralhar os mais incautos.
O desafio, para todos, está em tudo fazer para que este “novo normal” seja verdadeiramente o “novo normal”, aquele que afinal vem sendo há muito apregoado e sistematicamente adiado…
O vírus, esse maldito vírus, foi apenas o pretexto (o pior, refira-se, que nos podia acontecer) para que nós pudéssemos ver, uma vez mais, que o destino somos afinal nós que o escrevemos…
Saibamos, pois, ler as estrelas, com a sabedoria do “Vasquinho da Anatomia” e fazer do amanhã o novo normal, aquele pelo qual há muito todos nós batalhamos.
Caso contrário desperdiçaremos, uma vez mais, esta maravilhosa oportunidade de todos podermos ser, como certamente desejamos, uma verdadeira “autoridade na matéria”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico