O vírus e as bolhas
Os algoritmos de recomendação estão a substituir a aldeia global, criada pela Internet, por um conjunto de ilhas isoladas e remotas, onde apenas vemos e ouvimos os que pensam exactamente como nós.
O já prolongado confinamento a que fomos obrigados por força da epidemia teve e continuará a ter diversos efeitos colaterais, muitos dos quais já amplamente referidos nos media. Um desses efeitos foi, em minha opinião, a radicalização das posições defendidas por cada um de nós, sobre os mais diversos temas. O isolamento físico a que fomos obrigados obrigou-nos a recorrer, com mais intensidade, aos meios electrónicos para obter informação, tanto através dos media ditos tradicionais como através das redes sociais.
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O já prolongado confinamento a que fomos obrigados por força da epidemia teve e continuará a ter diversos efeitos colaterais, muitos dos quais já amplamente referidos nos media. Um desses efeitos foi, em minha opinião, a radicalização das posições defendidas por cada um de nós, sobre os mais diversos temas. O isolamento físico a que fomos obrigados obrigou-nos a recorrer, com mais intensidade, aos meios electrónicos para obter informação, tanto através dos media ditos tradicionais como através das redes sociais.
Já referi numa anterior crónica a capacidade das redes sociais para manipularem informação, criarem fracturas na sociedade e reduzirem a capacidade de diálogo. O fenómeno, conhecido como bolhas (em inglês, filter bubbles), ocorre porque as redes sociais, os motores de busca e diversos media têm a capacidade para identificar as nossas tendências e interesses e adaptar os conteúdos a essas tendências. Os endereços na Internet que frequentamos, o círculo de amigos que temos nas redes sociais, os emails e mensagens que trocamos, assim como os artigos que compramos, entre muitas outras coisas, fornecem informação detalhada sobre as nossas opiniões e preferências políticas, económicas, religiosas e sociais. Os algoritmos que seleccionam os conteúdos que nos são apresentados têm como objectivo fundamental maximizar a permanência dos utilizadores nos respectivos sites, por forma a aumentar as vendas, a influência e as receitas de publicidade.
O problema é que, ao maximizar o potencial interesse do utilizador, reduz-se inevitavelmente a diversidade das visões que são apresentadas. Qualquer que seja a opinião que se tenha sobre um certo assunto, ela sairá sempre reforçada pela apresentação de mais artigos, fotos e vídeos que manifestem visões semelhantes. Tendemos, inevitavelmente, a permanecer mais tempo nos media que reforçam as nossas opiniões.
Naturalmente, no convívio físico também seleccionamos os nossos amigos tendo em atenção as suas opiniões e o alinhamento das mesmas com as nossas. Mas existe uma maior diversidade, porque os grupos com os quais convivemos têm uma história comum que não se altera de um dia para o outro. Quando se vai almoçar com um grupo de colegas ou amigos, não se seleccionam, em geral, apenas aqueles que são do mesmo clube ou que votam no mesmo partido. Já na Internet, é muito comum ficar cada vez mais fechado numa bolha, onde nos são apenas apresentadas opiniões que concordam integralmente com as nossas.
Acredita que a Terra é plana? Que as vacinas causam autismo? Que Trump é um grande estadista? Que vivem extraterrestres entre nós? Que o 11 de Setembro foi planeado pelo governo americano? Que a oração pode curar o cancro? No nazismo? No fundamentalismo islâmico? No criacionismo? Na homeopatia? Na astrologia? Para cada um destes temas, e para milhares de outros, existem comunidades fanáticas nas redes sociais, séries intermináveis de filmes no YouTube e sites especializados que suportam e reforçam estas teorias e ideias, por mais disparatadas que pareçam.
Sujeito a confinamento, como tantos nós, não pude deixar de constatar o efeito destas bolhas na radicalização das opiniões que cada um de nós tem, sobre os mais diversos assuntos. Aqueles que acreditam que a covid-19 será uma doença de consequências catastróficas para a humanidade reforçam essa convicção ao lerem nas redes sociais apenas os artigos que apresentam argumentos nesse sentido. O mesmo acontece com aqueles que acreditam que o SARS-CoV-2 é um vírus inofensivo, semelhante nos seus efeitos a tantos outros vírus da gripe. Como resultado da epidemia, o número de epidemiologistas amadores cresceu ainda mais rapidamente do que o número de infectados e, em poucas semanas, milhares de portugueses tornaram-se peritos em epidemiologia, seguros dos seus modelos e intolerantes perante outras opiniões. Nesta área, como em tantas outras, opiniões cada vez mais radicais sustentam-se e reforçam-se nas bolhas criadas pela Internet. O resultado é ampliado pelo efeito de Dunning-Kruger, descrito num estudo publicado em 1999 e amplamente analisado desde então, que leva a que as pessoas com poucos conhecimentos numa área sejam incapazes de reconhecer as suas limitações e acreditem que são mais competentes do que realmente são.
Outros assuntos que se discutiram neste período tiveram o mesmo efeito fracturante, ao dividir de forma profunda e irredutível as opiniões: as cerimónias do 25 de Abril, as comemorações do 1.º de Maio, o prolongamento (ou não) do estado de emergência, as possíveis estratégias e a calendarização para um retorno à normalidade. Todos estes assuntos dividiram profundamente o país, com tanta violência e acrimónia que a leitura de opiniões nos media e nas redes sociais se torna penosa. Outros temas se sucederão, seguramente.
O resultado é que o diálogo profundo, construtivo e baseado em factos se torna cada vez mais difícil, um fenómeno a que assistimos tanto em Portugal como no estrangeiro. A verdade está, muitas vezes, entre as duas visões extremas e, em geral, as posições de compromisso são aquelas que minimizam os riscos e obtêm os melhores resultados. A forma como o Governo português geriu esta epidemia parece-me ser um exemplo de uma posição de compromisso com resultados que têm sido, até agora, positivos. Apesar disso, as posições do Governo são sistematicamente criticadas, de um e de outro lado. Não existe nada de errado em criticar a actuação das autoridades, e mal seria que essa liberdade fosse limitada. Mas quando tudo é violentamente criticado, simultaneamente por ser demasiado conservador ou demasiado aventureiro, demasiado à direita ou demasiado à esquerda, demasiado liberal ou demasiado estatista, fica-se com a sensação que as críticas deixaram de ser sobre a substância, e veiculam apenas as visões cegas de quem está fechado nas respectivas bolhas.
Os algoritmos de recomendação estão a substituir a aldeia global, criada pela Internet, por um conjunto de ilhas isoladas e remotas, onde apenas vemos e ouvimos os que pensam exactamente como nós. Neste ambiente, as notícias falsas propagam-se com facilidade, deixamos de ter a visão global e perdemos a capacidade de diálogo que é necessária para que as democracias funcionem eficazmente. O populismo avança e os candidatos que defendem posições de compromisso não são populares.
Portugal tem, até agora, resistido a esta tendência global de bipolarização e é, em alguns aspectos, exemplar. Mas a pressão é inexorável e, se nada fizermos, as bolhas acabarão por eliminar as posições intermédias a favor das posições extremistas. Depende de cada um de nós manter abertos os canais que nos trazem opiniões diferentes da nossa, preservar um espírito aberto e analisar os diversos argumentos de forma racional, objectiva e ponderada. Caso contrário, estaremos a contribuir para o fim da democracia, cada vez mais fechados nas nossas bolhas, cada vez mais intolerantes a opiniões contrárias.