Restaurantes: “Estou numa situação desastrosa mas só vejo oportunidades”, diz Andoni Aduriz

No primeiro dia do evento The Power of Food, em streaming, cozinheiros de vários países partilharam angústias e esperanças. Preparam-se para abrir as portas e para se adaptarem ao novo mundo, ainda desconhecido, que os espera. Andoni Aduriz e Joan Roca foram dois dos participantes do primeiro dia.

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Andoni Aduriz quando veio ao Porto cozinhar no Euskalduna, de Vasco Coelho Santos Anna Costa

Com os restaurantes fechados, chefs e cozinheiros confrontam-se com mil e uma perguntas, das mais pragmáticas às mais existenciais. Iremos sobreviver? Os clientes voltarão, com máscaras e distanciamento social? O modelo que existia ainda faz sentido? Pode um restaurante oferecer a mesma experiência fora das suas paredes? Ainda é possível ser criativo?

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Com os restaurantes fechados, chefs e cozinheiros confrontam-se com mil e uma perguntas, das mais pragmáticas às mais existenciais. Iremos sobreviver? Os clientes voltarão, com máscaras e distanciamento social? O modelo que existia ainda faz sentido? Pode um restaurante oferecer a mesma experiência fora das suas paredes? Ainda é possível ser criativo?

Para dar palco (virtual) a todas estas dúvidas e angústias, o simpósio Sangue na Guelra abandonou por agora a sua forma física, devido à pandemia do covid-19, e transferiu-se para a Internet, com o Power of Food, dois dias (4 e 5 de Maio) de conversas transmitidas em directo nas redes sociais e no YouTube.  

Entre portugueses e estrangeiros, com a presença de algumas das maiores estrelas da gastronomia mundial (como os espanhóis Joan Roca e Andoni Aduriz ou os peruanos Virgilio Martínez e Pía Léon), no primeiro dia houve de tudo. Alguns mostraram-se mais pessimistas, outros militantemente optimistas. Muitos acreditam que a pausa forçada é uma oportunidade para reflectir. E todos partilham a preocupação em tentar manter as equipas, pagar os ordenados e, se possível, não falhar aos fornecedores. 

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Alexandre Silva, no restaurante Loco Rui Gaudêncio

“O que pensávamos que era o futuro estava errado”, disse, logo na primeira sessão do dia, Alexandre Silva, que tem o Loco, o Fogo e um espaço no Mercado da Ribeira, todos em Lisboa. “Pensávamos que era investimento, investimento. As empresas eram obrigadas a investir. Hoje temos que zelar para que a empresa tenha condições para, caso isto volte a acontecer, aguentar seis, nove meses, um ano. Em vez de investirmos 99% do que ganhamos, se calhar investimos só 20%.”

Hugo Brito do Boi Cavalo, em Lisboa, reconheceu que muitos restaurantes em Portugal estavam a viver com “uma excessiva dependência do turismo” e que mesmo o seu projecto “tinha evoluído para um modelo que se estava a tornar formal de mais”. Com a crise, disse, “estamos a aproximar-nos do público português do qual nos tínhamos afastado por vários motivos”.

Vasco Coelho Santos, que tem, no Porto, o Euskalduna e o Semea, confessou que nos primeiros dias “não estava com cabeça para fazer nada”, bombardeado por informação vinda de todos os lados. “Foi tudo tão rápido, tão difícil, está a ser uma confusão”, sobretudo para um restaurante como o Euskalduna, que funciona com um balcão , que levou os últimos dois anos “a criar nome”, e estava finalmente a chegar a uma fase de consolidação desse trabalho. “Questiono-me porque é que tão rapidamente ia já meter-me num novo investimento”, confidenciou ainda Vasco. 

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Joan Roca no Algarve, quando participou no festival do hotel Vila Joya Vasco Célio

Mas se Alexandre, Hugo e Vasco são representantes de pequenos projectos independentes no universo da restauração portuguesa, Joan Roca, do El Celler de Can Roca, em Girona, e Andoni Aduriz, do Mugaritz, no País Basco, têm sob a sua responsabilidade dois dos mais importantes e revolucionários restaurantes de Espanha.

“Talvez tenhamos perdido a perspectiva do que somos e de onde estamos, perdemos a perspectiva das coisas”, disse Andoni, para logo de seguida se declarar optimista e entusiasmado com os desafios que agora enfrenta. “Estou possivelmente arruinado, cheio de dívidas, mas com o frigorífico cheio”, explicou, para lembrar as dificuldades que a geração da sua mãe enfrentou e concluir que “a vida é um desafio”.

“Quando uma pessoa tem muita convicção, os problemas fazem-se pequenos. Estou numa situação desastrosa, mas só vejo oportunidades”, declarou. Até porque “se calhar, o mundo em que vivíamos já estava a desaparecer e não nos tínhamos dado conta disso”. 

Joan Roca acredita que o que a pandemia veio mostrar foi que “somos muito vulneráveis e temos que ser muito humildes”. No caso do El Celler de Can Roca, considerado várias vezes como o “melhor restaurante do mundo” (The World’s 50 Best Restaurants), está ainda pensar como reabrir as portas, procurando a melhor forma de não perder o “contacto humano”. “Como é que se pode explicar um vinho com uma máscara posta?”, interroga-se, garantindo, contudo, que “é um desafio a que vamos ter que nos adaptar”.

Os dois chefs espanhóis conversaram com o português André Magalhães, da Taberna da Rua das Flores, que contou como tem mantido a Taberna a funcionar com take-away, solidariedade com os vizinhos (apoiando os bombeiros que têm o quartel na porta ao lado) e o esforço para levar a casa das pessoas a experiência de uma noite no restaurante.

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André Magalhães da Taberna da Rua das Flores Miguel Manso

É, sem dúvida, altura de fazer contas, mas os chefs não querem abdicar da criatividade – vários disseram que se o futuro fosse o take-away preferiam dedicar-se a outra actividade. Entretanto experimentam outros caminhos e se, na Eslovénia, Ana Rós (do Hisa Franko), que falará esta terça-feira, está a transformar o excesso de leite em gelados, em Modena, Itália, Massimo Bottura reuniu mais de um milhão de pessoas em quarentena para o ver cozinhar todas as noites, a partir de casa, no Instagram.

Reinvenção foi uma palavra que atravessou muitas das intervenções num dia que ficou marcado também por apelos a mudanças no sistema alimentar mundial: o economista britânico Tim Jackson, por exemplo, autor do livro Prosperidade Sem Crescimento, referiu um estudo feito no Reino Unido segundo o qual “pessoas que trabalham na indústria de abastecimento alimentar não conseguem comprar essa comida” e defendeu que não é baixando mais os preços que se resolve o problema mas sim criando “uma cadeia de abastecimento mais justa” que remunere melhor os que nela trabalharam.