Os caminhos da praça à Moldova
Caminhamos pela Baixa. Separados. Cada fotógrafo tem o seu ritmo. Olho para trás e para os lados. Já não vejo o Pimenta. Pouco importa. Sabemos sempre onde nos encontrarmos.
Caminho pela Praça do Comércio. Silêncio. Vêm-me à memória os filmes e os documentários que vi na televisão neste último 25 de Abril. Tento adivinhar a posição das chaimites, ver ao longe a fragata. Ouvir a voz de Salgueiro Maia. Adivinhar qual a arcada em que o Alfredo Cunha se escondeu para fotografar até Maia o chamar. A posição das chaimites do regime. O amanhecer com soldados em prontidão. Devia também existir muito silêncio. Outro silêncio. De incerteza e esperança. Diferente deste. Que atormenta. Que amordaça. Vou até ao Cais das Colunas. Uma fita da polícia impede o abraço ao rio. Olho para a praça e ninguém. Ao longe já não imagino o Alfredo Cunha. Avisto o Paulo Pimenta. Fotografa não sei o quê. Talvez a liberdade que os homens de Abril e os clandestinos de todos os outros meses e anos nos ofereceram.
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Caminho pela Praça do Comércio. Silêncio. Vêm-me à memória os filmes e os documentários que vi na televisão neste último 25 de Abril. Tento adivinhar a posição das chaimites, ver ao longe a fragata. Ouvir a voz de Salgueiro Maia. Adivinhar qual a arcada em que o Alfredo Cunha se escondeu para fotografar até Maia o chamar. A posição das chaimites do regime. O amanhecer com soldados em prontidão. Devia também existir muito silêncio. Outro silêncio. De incerteza e esperança. Diferente deste. Que atormenta. Que amordaça. Vou até ao Cais das Colunas. Uma fita da polícia impede o abraço ao rio. Olho para a praça e ninguém. Ao longe já não imagino o Alfredo Cunha. Avisto o Paulo Pimenta. Fotografa não sei o quê. Talvez a liberdade que os homens de Abril e os clandestinos de todos os outros meses e anos nos ofereceram.
Aproveito e aprecio a forma do Pimenta fotografar. Muito diferente da minha. Uma mulher atravessa o terreiro. Passo largo e apressado. Parece fugir. O Pimenta não se distrai. Não é homem para o fazer quando tem uma máquina fotográfica na mão. Rio-me sozinho. Um rir feliz. É só uma mulher apressada. Para o Pimenta, é muito mais. É tudo aquilo que ninguém mais vê. Só ele. Depois, num qualquer lugar, esbarraremos numa fotografia única. Ficamos a olhar. A contemplar. Percebemos que aquela praça, a do poder e da finança, é também uma praça de emoções, aberta à outra margem, com a imponente grua de outros tempos a abrir o caminho. Ficou muito por construir. Muitos caminhos por desbravar. Mas também se construiu muito. Construções sólidas que perduram e que nos salvam. Hoje mais do que nunca.
Caminhamos pela Baixa. Separados. Cada fotógrafo tem o seu ritmo. Olho para trás e para os lados. Já não vejo o Pimenta. Pouco importa. Sabemos sempre onde nos encontrarmos. E as memórias voltam outra vez. Quantas vezes comi castanhas ou comprei rosas para a namorada na Rua Augusta. Quantas vezes, depois das aulas, comi uma bifana e bebi uma imperial. Quantas vezes me sentei num banco e me deixei ir em pensamentos a prever o futuro. Raramente acertei. Mas a Rua do Carmo traçou-me o destino. Foi lá que as portas se abriram para entrar no mundo desconhecido do fotojornalismo. Sem esse dia, não teria conhecido o Pimenta. Primeiro camarada, depois amigo, e agora irmão. É bom ter irmãos. São poucos os que adquirem esse estatuto no meu coração. Mas tenho alguns. Nunca fui filho único.
A falta de massa humana, de agitação, de barulho, deixa a cidade a descoberto. E eles são muitos. “Eles” são os nossos pobres. Os sem-abrigo, os desamparados, os famintos. Eu e o Pimenta estamos juntos. Caminhamos pelo passeio largo e dialogamos com os olhos. Grupos conversam em redor do pacote de vinho. Outros esperam na fila da antiga “sopa dos pobres”. Nome feio. Outros dormem. Outros estão solitários. Perdidos. A cidade está vazia de gravatas e trotinetes. É como o café quando ferve. A borra vem ao de cima. A borra que ninguém gosta, mas que existe. Sem ela, não há café. Sem os famintos, não há abastados.
Os irmãos são cúmplices. Em segundos, os corações fundem-se. Entramos num pavilhão interdito à prática desportiva. Nas escadas de acesso às bancadas, estão agora centenas de sapatos gastos e usados. Uma imagem que fere até os olhos mais frios. Pergunto de quem são os sapatos. Respondem que são para quem necessitar. Sapatos gastos. Usados. Para pessoas com pés descalços. No recinto onde atletas transpiram por uma vitória, estão agora camas frágeis. Um quarto gigante, colectivo, onde cada um tem o seu canto. Um canto sem direito a privacidade. Sem biombos ou paredes. Cama, mesa, cadeira e uma mala ou um saco de plástico. Uma bíblia, um jornal, um desenho, uma fotografia, uma maçã. São os sem-tecto. Ali reunidos.
Sílvia vem ter comigo. Apressadamente, puxa pelo cigarro. Está faminta de nicotina. É bonita e fica-lhe bem o fumo a invadir-lhe a cara. Esforça-se no seu arcaico português. Tento perceber com a ajuda da sua amiga, agora também desempregada e sem casa. Sílvia veio da Moldova. Como todos, procurou ganhar dinheiro para enviar para os três filhos que lá deixou. No Alentejo, arrancou melões, apanhou azeitona, colheu tomate. Ela e outros como ela. Dormiam dez num quarto. Não tinham água quente nem fogão para cozinhar. Ganhava 24 euros por dia. O patrão descontava a renda, a luz e a água. Num dia foram despedidos. Com o vírus não se brinca. Sem nada, sem dinheiro nem solidariedade, Sílvia veio a pé de Beja até Lisboa. Ficou com os pés em ferida. Agora só quer voltar para junto dos filhos. Mas não sabe como. Só tem uns sapatos gastos.
Eu e o Pimenta vamos pela auto-estrada em direcção a norte. Vamos calados e pensativos. Que histórias ouvimos hoje... Sentimo-nos pequenos. Levamos nas nossas máquinas fotográficas jornalismo humano. Temperado com borras de café. E, no meio da confusão de luzes e reflectores, veio a ideia de levar a Sílvia até à Moldova. Sou bom condutor. É só uma questão de escolher o caminho. Depois, lembrei-me que alguém me disse que aquelas pessoas estão ali, naquele quarto colectivo, temporariamente. E depois? Depois, não sabemos. Travei a fundo, e perguntei ao Pimenta: “Não achas que era bom Salgueiro Maia voltar à Praça do Comércio?...”