Os meus doentes estão também preocupados comigo!
Testemunho de Rui Nogueira, médico de família. “E agora? Quando é que vamos ter doentes de novo no consultório? Quando é que vamos ter a consulta organizada de novo? Onde estão os doentes oncológicos, cardiovasculares, pulmonares, renais, neurológicos? Muitas dúvidas para os próximos meses.”
Tudo ficou diferente de um dia para o outro. A minha consulta diária passou a não ter doentes no consultório. E veio a primeira surpresa: os meus doentes estão também preocupados comigo! Estamos de acordo e temos medo de uma doença que é desconhecida de toda a gente.
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Tudo ficou diferente de um dia para o outro. A minha consulta diária passou a não ter doentes no consultório. E veio a primeira surpresa: os meus doentes estão também preocupados comigo! Estamos de acordo e temos medo de uma doença que é desconhecida de toda a gente.
No primeiro dia vesti a bata e peguei no estetoscópio como habitualmente. Estávamos em meados de março e depois de algumas chamadas telefónicas olhei para a cadeira do doente ao lado da secretária do consultório. Constatei que ainda não tinha estado ali ninguém sentado naquele dia e já tinha atendido alguns doentes. Estranho! Vi exames, dei conselhos, passei receitas, enfim, falei com doentes e de doenças, mas não vi ninguém naquela cadeira!
No dia seguinte já não peguei no estetoscópio e passado pouco tempo tirei a bata que tinha vestido ao chegar. O trabalho é agora no computador e ao telefone. Não tenho pessoas aqui no consultório. Mas há contacto. Há emoções. Há orientações. Há planos. Há prescrições. Mas é um trabalho muito diferente e estranho. A vantagem de conhecer os meus doentes e de eles me conhecerem é agora ainda mais evidente. Tudo fica mais fácil. A relação médico-doente é um património inequívoco já conhecido. Um património da humanidade, como um dia será reconhecido.
Há mais de um mês que é assim. Poucos doentes presentes e muitos telefonemas. O meu telemóvel deixou de ter bateria para o dia todo! Nos contactos seguintes já cumprimento com o nome logo ao atender a chamada: “Olá, Isabel, bom dia” — digo ao atender. Por sua vez, os cumprimentos dos doentes passaram a ter uma preocupação associada: “Como é que está?” Mas o sentido é mesmo saber como é que estou. Toda a gente sabe que os profissionais de saúde estão mais expostos a esta doença ultracontagiosa e os doentes perguntam se temos tido cuidado. Preocupam-se com a minha saúde, veja-se bem! E na despedida é frequente vir a recomendação do doente: “Tenha cuidado…” “Cuide-se…” “Não facilite…” “Olhe que isto é mesmo perigoso…”
Estamos todos a aprender a trabalhar num formato diferente e a viver com distanciamento. Mas sem isolamento. A utilização de meios digitais é agora mais importante do que nunca. O telefone e a videochamada são recursos úteis. As receitas enviadas para o telemóvel são agora de interesse reconhecido. O registo no processo do doente também ficou diferente. Nada é como era.
Em Portugal, os dirigentes ao mais alto nível, as organizações políticas, as ordens profissionais, as sociedades científicas e as autoridades de Saúde, nomeadamente a Direcção-Geral da Saúde, têm conseguido orientar as medidas necessárias e ajustadas à contenção da epidemia de forma determinada e consequente. Ainda estamos longe do fim e pode ser cedo para tirar conclusões, mas já temos provas de orientações políticas de valor inequívoco dirigidas à covid-19 e ao risco de contágio. Resta agora saber o que fazer com os outros doentes. Estamos a aprender muito com esta pandemia, mas ainda vamos ter de saber como dar a volta com o retomar a atividade normal.
A localização geográfica de Portugal na periferia da Europa deu-nos uma pequena vantagem para nos prepararmos. E preparámos! Com as medidas assumidas, com destaque para a Direção-Geral da Saúde, contando com um Serviço Nacional de Saúde forte e bem organizado, com profissionais de saúde preparados e determinados e, acima de tudo, com uma população consciente e solidária, sem dúvida que estamos a conseguir estar entre os melhores países da Europa nos indicadores que já é possível interpretar.
E agora, como vai ser a reentrada no mundo real? Quando é que vamos ter doentes de novo no consultório? Quando é que vamos ter a consulta organizada de novo? Quantos doentes esperam por nós? Onde estão os doentes oncológicos, cardiovasculares, pulmonares, renais, neurológicos? Como vai a saúde mental? Como é que vamos recuperar a realização de exames complementares? Muitas dúvidas para os próximos meses.