Esta amizade deu um romance e ajudou a fazer de Simone de Beauvoir o que ela foi
Les Inséparables, um inédito da escritora francesa, será lançado em Outubro. Registo autobiográfico ficcionado da sua relação com Elisabeth Lacoin, foi considerado “demasiado íntimo” para se publicar em vida da autora de O Segundo Sexo.
Se fossem duas adolescentes como tantas outras (e temos razões para duvidar disso) e a acção de Les Inséparables decorresse hoje, no mundo dos SMS e de outras siglas mais ou menos evidentes, Simone de Beauvoir e Elisabeth “Zaza” Lacoin poderiam ser BFF ("Best Friends Forever"). Neste romance inédito da escritora que deverá sair em França em Outubro (Éditions de L’Herne), Simone é Sylvie e Zaza é Andrée, duas raparigas que se conhecem na escola aos nove anos e que se tornam inseparáveis, como o próprio título indica, até ao liceu.
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Se fossem duas adolescentes como tantas outras (e temos razões para duvidar disso) e a acção de Les Inséparables decorresse hoje, no mundo dos SMS e de outras siglas mais ou menos evidentes, Simone de Beauvoir e Elisabeth “Zaza” Lacoin poderiam ser BFF ("Best Friends Forever"). Neste romance inédito da escritora que deverá sair em França em Outubro (Éditions de L’Herne), Simone é Sylvie e Zaza é Andrée, duas raparigas que se conhecem na escola aos nove anos e que se tornam inseparáveis, como o próprio título indica, até ao liceu.
Espelho de uma amizade intensa que terminará tragicamente, na vida real, com a morte de Zaza aos 21 anos, de encefalite, o romance foi considerado “demasiado íntimo” para ser publicado ainda em vida de Beauvoir, esclarece ao diário britânico The Guardian a agente literária Marleen Seegers, que mediou a edição. Les Inséparables foi encontrado nos arquivos desta escritora francesa que, não gostando que lhe chamassem filósofa, deu um contributo decisivo para as teorias do existencialismo e do feminismo.
Foi a filha adoptiva, Sylvie Le Bon de Beauvoir, encarregue de gerir o seu património literário e autora do prefácio deste romance de 176 páginas, quem deu com o manuscrito logo depois da morte de Simone, em 1986, aos 78 anos. Outras prioridades na hora de decidir que textos inéditos publicar levaram a que Les Inséparables tivesse de esperar mais de seis décadas para chegar às mãos dos leitores.
Escrito na primeira pessoa em 1954, cinco anos depois de O Segundo Sexo, talvez a sua obra mais divulgada, este romance foi depois rejeitado por Beauvoir, que o considerou pouco interessante, embora nunca o tenha destruído, como sucedeu com outros textos.
O filósofo Jean-Paul Sartre, seu companheiro, também torceu o nariz quando ela lho mostrou, conta Beauvoir nas suas memórias. “Não poderia ter estado mais de acordo: a história parecia não partir de qualquer necessidade interior e não conseguia manter a atenção do leitor”, escreveria a autora num dos seus quatro volumes autobiográficos. Deixou-o, até, sem título (foi Le Bon de Beauvoir a escolhê-lo postumamente).
Interessante ou não, inacabada ou não, esta obra de ficção fortemente ancorada na realidade que Beauvoir e Zaza partilharam, e que muitos procuravam há décadas, dá agora aos investigadores a possibilidade de se aproximarem um pouco mais desta amizade fundadora, essencial para o desenvolvimento intelectual e emocional da escritora, que sobre ela decidirá escrever aos 46 anos.
No coração deste Les Inséparables estão “duas jovens que lutam contra as ideias convencionais do que uma mulher deve ser na Paris do começo do século XX: casta, devota, obediente e forçada, desde muito cedo, a pôr de lado os seus próprios interesses e paixões”, explica ao Guardian a editora-sénior Charlotte Knight, da Vintage, editora que assegurará a publicação do livro no Reino Unido em 2021.
O que cabe a uma mulher
Tanto Simone de Beauvoir como Zaza Lacoin pertenciam a um meio privilegiado da sociedade francesa, embora a família da escritora não tivesse uma carteira consentânea com o seu estatuto social. Neste universo as mulheres eram desencorajadas de prosseguir os estudos e de dar largas às suas ambições, condenando-se à nascença qualquer desejo de independência.
“É só quando me comparo com Zaza que rejeito amargamente a minha banalidade”, escreve Beauvoir, elogiando a rebeldia da amiga, em Memórias de uma Menina Bem-comportada, o primeiro volume das suas memórias, lançado em 1958. “Lutámos juntas contra o destino revoltante que nos esperava e, durante muito tempo, acreditei ter pagado a minha própria liberdade com a morte dela”, continua a autora, num trecho citado pelo jornal The New York Times.
Quando morreu, lembra agora o mesmo diário norte-americano, os pais de Zaza tinham já procurado pôr fim à sua relação com o filósofo Maurice Merleau-Ponty (Jean, no livro), que Simone de Beauvoir apresentara à amiga, por considerarem que ele nunca seria um marido adequado.
Esta e outras situações de que dá conta em Les Inséparables – era assim que colegas e professores se referiam às duas – sugerem a biógrafos e outros académicos dedicados ao estudo da obra de Beauvoir que a amizade com Zaza viria a ter um papel determinante no pensamento da autora, sobretudo no que diz respeito à desigualdade de género. Acreditam também, ainda segundo o mesmo jornal, que este livro trará dados importantes sobre a evolução da sua escrita.
“Foi uma descoberta fantástica”, disse ao New York Times Éliane Lecarme-Tabone, a única académica autorizada a ler o romance antes de publicado. “Sabemos que Simone de Beauvoir é por vezes demasiado exigente consigo mesma. Este livro merece ser compreendido.”
Beauvoir, que em vida viu publicadas outras obras de ficção e até chegou a ganhar um dos principais prémios das letras francesas, o Goncourt, em 1954, com Os Mandarins, é essencialmente associada à sua produção de teor político e filosófico. Mas também escreveu romances e histórias breves. Os inéditos, aliás, estão longe de se esgotar em Les Inséparables. Sylvie Le Bon de Beauvoir, confidente da escritora durante 26 anos e por ela adoptada em 1980 para que tivesse legalmente direito ao seu património, promete não parar de os dar a conhecer.