Pior do que ontem, mas sempre melhor do que amanhã

Quase dois meses depois, este isolamento social continua a encolher o meu quarto desenfreadamente. E a ansiedade fica à solta enquanto eu me fecho.

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É uma jornada em que caminho parado sob o negrume mais do que esperado, mas sempre tenebroso. Todas as manhãs, levanto-me e não acordo, tal é a tortura persistente que o cérebro faz em pensar naquilo que não aconteceu, não acontece e muito provavelmente nem acontecerá. Como dizem os anglófonos, é um “overthinking” – mas em esteróides —, que me amarra à cama antes de o dia sequer começar. São inúmeras inseguranças, desde o meu corpo, àquilo de que sou capaz de fazer ou das muitas coisas que me culpo incessantemente de não ser capaz de fazer. Esta ausência de auto-estima é tão absurda que até me custa aventurar-me em pousar os pés no chão.

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É uma jornada em que caminho parado sob o negrume mais do que esperado, mas sempre tenebroso. Todas as manhãs, levanto-me e não acordo, tal é a tortura persistente que o cérebro faz em pensar naquilo que não aconteceu, não acontece e muito provavelmente nem acontecerá. Como dizem os anglófonos, é um “overthinking” – mas em esteróides —, que me amarra à cama antes de o dia sequer começar. São inúmeras inseguranças, desde o meu corpo, àquilo de que sou capaz de fazer ou das muitas coisas que me culpo incessantemente de não ser capaz de fazer. Esta ausência de auto-estima é tão absurda que até me custa aventurar-me em pousar os pés no chão.

Parece que eu próprio me recuso a sentir algo, por muito insignificante que seja. Ao mesmo tempo, sinto que vou rebentar de emoções e que todo o vazio me invade. Não me sei explicar. E o pior é que, com uma massa cinzenta extinta de quaisquer sonhos, o corpo, (in)conscientemente, parece querer permanecer enraizado num baldio infértil e esquecido. O que sinto e deixo de sentir aparenta ser dubiamente falso, supérfluo. Apesar do turbilhão de pensamentos, desconfio de tudo aquilo que me passa pela cabeça, seja positivo ou negativo, tomando tudo por meros delírios e ilusões. Tudo isto ao ponto de mirar quem mais me estima e ama com um olhar morto; ao ponto de desejar distância de quem mais puxa pelo meu braço nestas areias movediças.

Esta mente é teimosa. Nunca sobe do seu inferno (des)confortável em que delira. E muito menos o quer. Conforma-se com a quietude, a falta de ideias, a ausência bizarra de estímulos. Porque apesar de fervilhar a toda a hora, limita-se a olhar pela janela, para o que os outros andam a fazer. A vontade, os sonhos, desaparecem. Seja investir na minha carreira e formação, seja lavar a louça, o máximo que consigo fazer é arrastar-me penosamente; uma vez que nada me faz sentido, nada me tem um propósito, nada me acrescenta. Depois só me resta lamentar; e choro, mas tão apaticamente, que as lágrimas caem já secas.

A minha alma esvazia-se de tudo o que é do mais humano possível, desde o caos à paz, para se quedar numa massa amorfa sem personalidade. Um caderno sem tinta jorrada, de capa preta, simplérrimo, onde nada me apetece escrever, porque não sei daquilo que gosto ou deixo de gostar; não sei quais as minhas qualidades notórias ou os meus defeitos naturais; não sei aquilo que me faz feliz nem aquilo que me faz triste. Sem carácter ou sem traços que me reconheça, concluo, inevitavelmente, todos os dias, que não sei quem sou. E isso atormenta-me, sem quaisquer pausas para descansar.

Acordo e não existo. Nada desperto a não ser uma desilusão arrasadora, tão cruelmente natural, que chego a pensar se faz sentido aqui ficar. Todas as coisas deste mundo, as relações que eu tenho, os meus objectivos “há não sei quanto tempo” traçados estão-me tão longínquos que me poupo o esforço de sequer prosseguir com a minha vida. Estagnada e sem quaisquer planos ou compromissos. Aliás, só a ideia de ter que dar a minha palavra quanto àquilo de que sou capaz me aterroriza. Afinal, é muito mais fácil lamentar na morte do que reconhecer em vida, não é?

De um fado não canto, apenas murmurando para mim próprio. Sempre tranquei esta dor, para não provar da vergonha que Adão e Eva conheceram. É um receio assombroso em revelar as minhas fragilidades e inseguranças aos outros. Com medo de quê? Não sei. Apenas transparecia nos tremores dos dedos, nos lábios marcados pelos dentes inquietos, nas pernas de corredor sentado, na barba desfeita de pêlos arrancados; no medo constante do contacto visual, nas arritmias cada vez que confiavam nas minhas capacidades, na fadiga constante, mesmo quando acabo de acordar.

É uma quarentena que dura meses, anos; cercado por um muro edificado, tijolo por tijolo, pelas minhas próprias mãos. E agora veio uma pandemia tornar este isolamento ainda mais real e agoniante. A dor silenciosa torna-se ruidosa. Distraí-me tanto nesta solidão que agora toda a distância daqueles que amo e estimo me custa infinitamente. Perco, cada vez que abro os olhos, o pouco que me ligava ao mundo real, o pouco que me mantinha são. Sem ninguém em meu redor que me possa estimular, puxar, incentivar, encerrando-me cada vez mais neste casulo condenado que são as quatro paredes do meu quarto.

Nada faço dos meus dias e muito menos sei o que realmente (posso) fazer. Estou autenticamente perdido sem o toque, a proximidade de quem, pé ante pé, me acompanhava para fora deste recôndito profundo e sombrio. Quase dois meses depois, este isolamento social continua a encolher o meu quarto desenfreadamente. E a ansiedade fica à solta enquanto eu me fecho. Porque, todos os dias, perco um pouco de mim e daqueles que de mim fazem quem eu sou (ou quero ser). Sou tudo e nada. Não sei. Apenas sei que não sou eu. E que estou pior do que ontem, mas sempre melhor do que amanhã.