Uma ideia imprudente
Advogar a imunidade de grupo como política a seguir nesta altura seria na minha opinião extremamente arriscado.
Tem vindo a ser divulgada por alguns meios de comunicação, por políticos e cientistas, a ideia imprudente de que a imunidade de grupo é a única maneira viável para nos salvarmos da covid-19. Ainda recentemente, esta teoria foi exposta na imprensa portuguesa pelo virologista Pedro Simas. De acordo com o Expresso, Pedro Simas “defende que o próprio vírus é a solução, que o único caminho é a imunidade de grupo e vê na sociedade um ‘excessivo medo de morrer’”.
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Tem vindo a ser divulgada por alguns meios de comunicação, por políticos e cientistas, a ideia imprudente de que a imunidade de grupo é a única maneira viável para nos salvarmos da covid-19. Ainda recentemente, esta teoria foi exposta na imprensa portuguesa pelo virologista Pedro Simas. De acordo com o Expresso, Pedro Simas “defende que o próprio vírus é a solução, que o único caminho é a imunidade de grupo e vê na sociedade um ‘excessivo medo de morrer’”.
A meu ver, esta ideia é não só contrária à lógica como é praticamente impossível de atingir, pelas seguintes razões:
Primeiro, porque não temos absolutamente nenhuma prova de que os infetados com este vírus em particular desenvolvam qualquer tipo de imunidade a longo prazo. Aqueles que sobrevivem à covid-19 tanto podem adquirir imunidade por uma semana, como por um mês, um ano ou dez anos. Ninguém sabe. E sem imunidade de longo prazo, não é possível assegurar a proteção generalizada da sociedade. Além disso, tal como acontece com outros vírus, surgirão indubitavelmente variações individuais. Algumas pessoas manter-se-ão imunes durante anos, outras apenas algumas semanas. Em resumo, advogar a imunidade de grupo como política a seguir nesta altura seria na minha opinião extremamente arriscado.
Em segundo lugar, os especialistas que estudam este problema consideram que, para que a imunidade de grupo pudesse oferecer uma proteção significativa, seria necessário que 70% da população em causa fosse infetada e desenvolvesse uma imunidade forte. Se sete milhões de portugueses fossem infetados, quantos de nós poderiam ficar seriamente doentes e exigindo hospitalização? Neste momento, ninguém o sabe. Porquê? Porque não dispomos de estatísticas fiáveis sobre a percentagem de pessoas que ou não apresentam sintomas ou cujos sintomas são tão fracos que passam despercebidos e não são registados.
Consequentemente, nem cientistas nem políticos estão habilitados a fazer qualquer previsão fiável sobre quantos daqueles sete milhões de pessoas sobreviveriam e quantos morreriam.
Deveria Portugal e outros países pôr termo às suas políticas de distanciamento social e de quarentena – substituindo-as por uma política de imunidade de grupo – com base nesta situação de quase total ignorância em que nos encontramos?
Tudo me faz crer que não.
Outro problema que teríamos de defrontar é que, mesmo que apenas uma ínfima percentagem das pessoas infetadas viessem a ficar seriamente doentes, os nossos serviços de cuidados intensivos ficariam rapidamente sobrecarregados. Imagine-se, por exemplo, que apenas 1% desses sete milhões de pessoas infetadas com o novo coronavírus em Portugal necessitassem de hospitalização: teríamos mesmo assim 70 mil pessoas a recorrer aos hospitais.
Com 70 mil pessoas exigindo cuidados médicos urgentes, todas as unidades de cuidados intensivos do país ficariam rapidamente sobrelotadas. Vários milhares de pessoas apresentando sintomas de risco de vida teriam de ser enviadas para casa, por ser impossível admiti-las nos hospitais. Além disso, teria igualmente de ser negado acesso a cuidados médicos a pacientes com outras doenças e problemas de saúde graves: vítimas de acidentes rodoviários, mulheres apresentando complicações de gravidez constituindo risco de vida, vítimas de ataques cardíacos e AVC, por exemplo.
A quem caberá decidir quem é autorizado a entrar para uma unidade de cuidados intensivos e quem deve voltar para casa e possivelmente morrer?
Teremos de dispor de uma estratégia para recusar assistência a milhares de pessoas. O que significa que os órgãos hospitalares terão de estar preparados para decidir quem será admitido ou não admitido no hospital. E quem fará parte desses órgãos? Médicos? Administradores hospitalares? Quais serão os critérios por eles adoptados? Será que tais órgãos poderão decidir que as pessoas com mais de 70 anos não deverão ter acesso a cuidados médicos? Os cegos ou os surdos? As pessoas em cadeiras de rodas? Os imigrantes?
A não ser que queiramos basear o futuro do nosso país numa ideia que pode vir a revelar-se impossível de atingir e a não ser que queiramos ter de criar órgãos de especialistas para decidir quem vive e quem morre, mais vale pormos de parte a ideia de que a imunidade de grupo é uma maneira viável e lógica de resolver o problema que nos é colocado por esta pandemia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico