“Voltar a olhar para o mecenato!”
É necessário voltar a olhar com olhos de ver para o mecenato cultural, nomeadamente concretizando uma necessária autonomização do regime e uma efectiva simplificação de procedimentos que torne a lei mais clara.
Numa conjuntura de extrema adversidade e imprevisibilidade como a que vivemos, em que a uma crise sanitária se vai seguir uma crise social e económica de escala ainda por aferir, o Estado vê-se obrigado a reforçar o investimento em múltiplos setores da sociedade, nomeadamente no sector cultural. Esse investimento deve, nesta altura mais do que nunca, ser partilhado com o investimento privado, constituindo o mecenato uma forma privilegiada de associar a iniciativa privada ao grande desiderato de dinamização da criação e da atividade cultural nas suas mais variadas manifestações.
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Numa conjuntura de extrema adversidade e imprevisibilidade como a que vivemos, em que a uma crise sanitária se vai seguir uma crise social e económica de escala ainda por aferir, o Estado vê-se obrigado a reforçar o investimento em múltiplos setores da sociedade, nomeadamente no sector cultural. Esse investimento deve, nesta altura mais do que nunca, ser partilhado com o investimento privado, constituindo o mecenato uma forma privilegiada de associar a iniciativa privada ao grande desiderato de dinamização da criação e da atividade cultural nas suas mais variadas manifestações.
Habituámo-nos a associar o mecenato aos traços distintivos da cultura humanística e a uma imagem de filantropia esclarecida, sobretudo de períodos de particular fulgor das artes, como o Renascimento e o barroco italiano, ou, anteriormente, da antiga Grécia e de Roma. Associá-lo ao chamado mecenato de empresa é mais difícil, porque instaura o espaço do mercado e da lógica económica, ainda hoje, de certa forma, tidos por incompatíveis com os princípios da produção cultural.
A questão do financiamento privado da cultura em geral e do mecenato de empresa em particular reveste-se sempre de acrescida actualidade na Europa, onde a cultura tradicionalmente tem permanecido sob a alçada do Estado, num sentido inverso ao que se passa nos EUA, onde as artes dependem sobretudo do patrocínio privado. Não é de estranhar, pois, que, a questão público vs privado seja, ainda, uma questão exemplar do modo como se reflecte a própria actualidade do debate sociopolítico levantado em torno do alcance e dos limites do estado social no interior do campo cultural.
Se o mecenato protagonizado por instituições de interesse público (como as fundações) não causa problemas, já o de empresa tende a confrontar duas lógicas: do lado da cultura, os valores humanistas, de interesse geral e generosidade social, institucionalmente atribuídos ao papel do Estado e à ética do mecenato tradicional; do lado das empresas, o jogo de interesses particulares e princípios de natureza publicitária. No fundo, a dicotomia sempre existente entre mecenato e patrocínio.
Ora, é cada vez mais pacífico que, para além dos benefícios de natureza fiscal, o mecenato envolve um objectivo de retorno de prestígio que não sendo confundível com o patrocínio não deve ser considerado despiciendo.
Associar a noção tradicional de filantropia a uma mistificatória ética do desinteresse é assim, talvez, uma “hipocrisia humanista” (Jean-Jacques Rosé, L'Or pour l'Art - du Mécène aux Sponsors, Paris, Flammarion,1986), que acaba por deturpar a histórica e necessária relação de coexistência que sempre se estabeleceu entre mecenato e interesse.
As empresas não são por definição sedes de filantropia. Há interesses e expectativas intrinsecamente instrumentais e, no caso do mecenato, a exploração de uma publicidade de prestigio. São múltiplos os estudos que demonstram que as deduções fiscais não são prioritárias para a decisão de praticar o mecenato.
Em Portugal, não existe uma expressiva tradição de mecenato. As razões serão várias: burocracia, poucas vantagens, escassa atractividade e empatia, relativo empenho político. Talvez sentindo isso, nas últimas eleições legislativas, praticamente todos os partidos com assento parlamentar colocaram a questão do mecenato nos seus programas.
Apesar de tudo, nos últimos anos introduziram-se alguns positivos benefícios fiscais no contexto da atividade artística, tais como o incentivo fiscal à produção cinematográfica (art.º 59.º F do Estatuto dos Benefícios Fiscais - EBF), e o reconhecimento desde 2018, da importância do apoio ao turismo e ao cinema, visando reforçar a captação de grandes eventos internacionais e de filmagens em Portugal.
Mas este será por ventura o tempo perfeito para voltar a olhar para o mecenato em Portugal, procedendo a alterações ao actual regime que lhe concedam a atractividade necessária para a adesão da sociedade civil no compromisso nacional de defesa do património e do desenvolvimento da produção cultural, nomeadamente das artes. Vivemos um tempo de muitas expectativas e ansiedades face ao futuro. Um tempo em que precisamos da “imaginação sociológica” de que falava Wright Mills e de ensaiar novas soluções para problemas antigos. Um tempo de um verdadeiro neo New Deal, o extraordinário plano de reformas e investimentos implementados durante a década de 1930 por Roosevelt para superar a Grande Depressão Americana de 29.
Precisamos de ideias e de as debater, desde a criação de um “Atlas Dinâmico” das indústrias e recursos culturais e criativos nacionais, (que constituiria a base para o identificação dos projetos a apoiar e no qual estariam vertidas as ofertas culturais e as estratégias de promoção em bases territoriais, criando redes coerentes, aumentando economias de escala através de sinergias, limitando o desperdício de dinheiro público, experimentando novas formas de parceria entre público e privado, com base no projeto e não no procedimento), até à criação de uma campanha “Burocracia Zero”, assente numa radical simplificação de procedimentos, passando pela criação de um selo, como existe em França e noutros países, dos “Grandes Mecenas da Cultura”. Muito pode ser ensaiado.
Em termos do regime propriamente dito, o olhar para o mecenato de que falamos, pode ser mais ousado, introduzindo um sistema diferente, como por exemplo o que existe no Brasil, cuja “Lei Rouanet” de 1991 permite que cidadãos e empresas possam aplicar 6% e 4%, respectivamente, dos seus impostos em projectos culturais previamente validados pelo Ministério da Cultura, saindo portanto o dinheiro do imposto de quem deseja investir no projecto cultural e abrindo mão o Estado de receber aquela quantia via impostos. E cujos resultados parecem ser genericamente bastante positivos.
Ou então, se não quisermos ser tão ousados e assumir como premissa que as alterações a introduzir não podem implicar qualquer diminuição de receitas fiscais (o que face ao contexto de crise económica iminente será a opção mais expectável), é mesmo assim possível simplificar e agilizar vários processos, reforçar a transparência de procedimentos e incentivar o aumento do investimento mecenático.
Eis 4 contributos:
Comecemos por uma questão de forma: actualmente o Regime do Mecenato faz parte do chamado Estatuto de Benefícios Fiscais - EBF (aprovado pela Dec. Lei n° 215/89, de 1 de julho e com múltiplas alterações ao longo dos anos). No caso, do Mecenato Cultural este encontra-se vertido no artigo 62.º-B e contempla um conjunto de incentivos de natureza fiscal que se concretizam em sede de imposto sobre o rendimento, na esfera do mecenas. A interpretação do que pode ou não ser considerado mecenato faz-se ainda hoje com recurso à Circular nº 2/2004, de 20 de Janeiro, emitida pela Direção de Serviços do IRC.
Um dos problemas identificados pelo Grupo de Trabalho para o Estudo dos Benefícios Fiscais (BF), criado em 2018 pelo Despacho n.º 4222/2018, de 26 de abril, do Gabinete do Ministro das Finanças, para a “realização de um estudo aprofundado sobre o sistema de benefícios fiscais em vigor em Portugal, que permita a sistematização do elenco dos Benefícios Fiscais em vigor e a sua avaliação individual” foi, precisamente, o da dificuldade em proceder a uma adequada avaliação individual dos mais de 500 Benefícios Fiscais existentes.
Pode ler-se no sumário executivo do dito estudo: “(…) Em alguns casos, a falta de clareza ou, pelo menos, de leitura óbvia do objetivo extrafiscal induz-nos a reflectir sobre a pertinência dos BF. A incapacidade de, em alguns casos, se conseguir apurar a despesa associada e/ou o número de beneficiários aponta para a impossibilidade de avaliação e da garantia de eficácia e/ou eficiência do instrumento.” E mais à frente: “(…) A opção por manter tudo na mesma continuará a permitir que o sistema consuma uma fatia substancial do Orçamento do Estado, com escasso escrutínio, regras ou transparência. A eficiência na gestão dos fundos públicos é fundamental, sobretudo num contexto de consolidação orçamental e controlo da dívida pública. O sistema de BF não deve ser desligado daquilo que deve ser a estratégia global de financiamento da economia.” (in Os Benefícios Fiscais em Portugal, Conceitos, metodologia e prática, Maio 2019).
Este relatório apresenta um pertinente conjunto de sugestões que procuram trazer mais transparência e eficiência ao sistema, desde a criação de uma nova metodologia de acompanhamento dos BF, à criação de uma Unidade Técnica para Avaliação, ao repensar o enquadramento dos BF em sede de Orçamento de Estado.
Neste ponto o que pessoalmente defendemos é a autonomização do regime do mecenato cultural num único diploma, conferindo-lhe a devida dignidade formal e a sua clarificação por forma a não ser necessário recorrer à ajuda de uma circular interna interpretaria de 2004.
O segundo ponto que merece um olhar é o da exigência de não retorno “comercial” do mecenas, que obviamente é uma das premissas do mecenato, mas que deve ser interpretada com bom senso e atualidade. De acordo com a definição legal de mecenato, apenas podem beneficiar deste regime fiscal privilegiado, os donativos, ou seja, as prestações em que impera o espírito de liberalidade, em relação às quais, portanto, não se verificam quaisquer contrapartidas que configurem obrigações de carácter pecuniário ou comercial.
Esta é uma das matérias cuja interpretação importa flexibilizar: o entendimento muito apertado existente na administração fiscal de que determinadas regalias em espécie atribuídas pelo beneficiário ao doador constituem contrapartidas de carácter comercial, inviabilizadoras do enquadramento no âmbito do mecenato, não parece totalmente compatível com o mundo atual. Com efeito, apenas se permite a associação da imagem do doador à acção de mecenato com 3 condições: referência apenas ao respectivo nome ou designação social e logotipo, nada mais; essa divulgação deve fazer-se de modo idêntico e uniforme em relação a todos os mecenas, não podendo a mesma variar em função do valor do donativo concedido; e a identificação pública do mecenas deve efectuar-se de forma discreta (!), num plano secundário relativamente ao evento ou obra aos quais aparece associada. Não se verificando estas 3 condições, estar-se-á perante um patrocínio e não de um mecenato. São requisitos subjectivos que precisam de uma interpretação adequada a novas realidades. Naturalmente, que a vantagem de notoriedade e “publicidade” retirada pelo mecenas após a doação deve representar para este uma contrapartida menor do que o valor do apoio, mas esta premissa deve ser olhada com bom senso à luz do tempo que vivemos.
Uma terceira questão prende-se com o chamado reconhecimento prévio. Para que os donativos atribuídos a entidades que desenvolvam atividades culturais, sejam fiscalmente relevantes, aquelas devem obter junto do Ministério da Cultura, uma declaração prévia que certifique o interesse cultural das atividades prosseguidas ou das ações a desenvolver. Esse parecer é o eixo em que assenta a relação entre, por um lado o agente cultural — reconhecimento do mérito cultural e, por outro, a empresa – isenção fiscal. Um parecer que funciona como caução do valor simbólico de um projeto, levanta sempre questões de subjectividade e dependência. Importa por isso reforçar a transparência através da criação de mecanismos de acompanhamento permanente dos procedimentos inerentes a esse reconhecimento, até porque as entidades em causa estarão já fiscalmente enquadradas numa classificação inerente a uma atividade cultural.
Por fim, do lado das entidades que são beneficiárias de donativos, estas são obrigadas a emitir um documento comprovativo dos montantes recebidos a este título, com a indicação do seu enquadramento no âmbito do capítulo do EBF relativo ao mecenato e de que o donativo é concedido sem contrapartidas (artigo 65., n° 1 do EBF). Além disso, devem possuir um registo actualizado das entidades mecenas, do qual constem, nomeadamente, o nome, o número de identificação fiscal, bem como a data e o valor de cada donativo que lhes tenha sido atribuído, bem como deverão entregar à Direcção-Geral dos Impostos, até ao final do mês de fevereiro de cada ano, uma declaração de modelo oficial referente aos donativos recebidos no ano anterior. E, ainda, os donativos em dinheiro de valor superior a 200€ devem ser efectuados através de meio de pagamento que permita a identificação do mecenas, designadamente transferência bancária, cheque nominativo ou débito direto. Pensamos que esta matéria também pode ser simplificada.
Em suma, é necessário iniciar este debate e voltar a olhar com olhos de ver para o mecenato cultural, nomeadamente concretizando uma necessária autonomização do regime e uma efectiva simplificação de procedimentos que torne a lei mais clara e menos sujeita a interpretações, com a consciência sempre presente que para além dos benefícios de natureza fiscal o mecenato envolve sobretudo um objectivo de interesse, de retorno de prestigio que não sendo confundível com o simples patrocínio (comercial) não deve ser mal interpretado, sendo na conjuntura existente uma opção justa e necessária para o aumento da receita e consequentemente para o aumento dos apoios às artes e à cultura.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico