E depois da pandemia? Dez notas para pensar o futuro
Se ninguém tem uma bola de cristal para antecipar as mudanças, há tendências que se desenham no horizonte. Arrisco antecipar muito sumariamente dez delas.
A pandemia provocada pelo coronavírus representa um desafio sem paralelo no tempo das nossas vidas. O Grande Confinamento tem consequências globais, únicas e sistémicas, atingindo praticamente todos os países de todos os continentes. A hecatombe económica e a devastação provocada por um golpe repentino e simultâneo na oferta e na procura não encontram respaldo nos manuais de economia.
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A pandemia provocada pelo coronavírus representa um desafio sem paralelo no tempo das nossas vidas. O Grande Confinamento tem consequências globais, únicas e sistémicas, atingindo praticamente todos os países de todos os continentes. A hecatombe económica e a devastação provocada por um golpe repentino e simultâneo na oferta e na procura não encontram respaldo nos manuais de economia.
Em Portugal, segundo estimativas do ministro das Finanças, podemos antecipar perdas no PIB anual de 6,5% por cada 30 dias úteis de contenção na actividade económica semelhantes aos das últimas semanas. É assim em todo o mundo. Segundo a AFP, no final da segunda semana de Abril, 4,5 mil milhões de pessoas estavam a cumprir medidas de confinamento em alguma parte do mundo: quase 58% da população mundial actual. Serviços congelados, produção industrial parada, cadeias de abastecimento interrompidas, trabalhadores em casa.
Perante um choque desta natureza, para o qual as nossas escalas tradicionais parecem anquilosadas, temos já algumas certezas: ele vai provocar mudanças profundas, ainda desconhecemos muitas delas e estão longe de se restringirem à economia, envolvendo mutações sociais, culturais e comportamentais nos nossos modos de vida. E se ninguém tem uma bola de cristal para antecipar as mudanças, há tendências que se desenham no horizonte. Arrisco antecipar muito sumariamente dez delas:
1. Estado, Estado, Estado. É um clássico de todas as crises e há coisas que apesar de tudo nunca mudam. Até o mais empedernido dos liberais se transforma transitoriamente num indefectível socialista. Dizem que são tempos excepcionais e é verdade. Mas se o Estado serve para acudir em momentos destes, talvez seja bom preservá-lo fora deles. Estado Social. Serviço Nacional de Saúde. Segurança Social. Garantia de mínimos sociais. Apoio às empresas e aos trabalhadores. Escola Pública. Regulação e intervenção no mercado. Preservação de direitos laborais. Redistribuição. Justiça fiscal. Tudo ideias de uma vida decente em sociedade que os liberais nos queriam fazer crer que estavam em desuso. Pois aí estão elas, as ideias e as suas consequências, mais fortes do que nunca.
2. Mais Europa, melhor Europa. Os avisos foram feitos por vários países, com Portugal à cabeça. Mas também pelas mais massacradas Itália e Espanha. A arquitectura institucional europeia (e, em especial, da zona euro) criou uma fenda assimétrica que antes de ser regional é económica. Ela voltou como custo moral da crise e isso é intolerável. O problema não é novo, mas reaviva-se: o processo de integração do euro é a história de um processo que faz de alguns países mais vencedores do que outros. Mesmo os contribuintes líquidos do orçamento europeu ganham bem mais na sua competitividade com a moeda única que sobrepesa nas exportações das economias do Sul, acumulando distorções. Ora, deixar esses países à mercê de uma nova espiral especulativa com os encargos decorrentes do combate à crise, que vão gerar défices que por sua vez vão somar dívida, pode ser o toque de finados desta UE. Ninguém o quer. Mas nem todos parecem disponíveis para o impedir com o mesmo vigor. Precisamos de mais Europa e melhor Europa, no melhor espírito dos seus fundadores. E isso implica partilha das responsabilidades da dívida resultante desta crise. A Europa ou é solidária ou não será.
3. Mudanças na globalização. O processo de interdependência e contínua integração do sistema económico mundial têm um duro teste com esta crise. As cadeias globais romperam, as auto-estradas aéreas estão suspensas, os modos de viajar vão mudar e antevê-se que, após o confinamento, venha a territorialização. A reemergência das fronteiras é algo certamente temporário, mas os travões à mobilidade mundial (de pessoas, de mercadorias, de serviços) serão duradouros. Isto não coloca em causa a perspectiva de um mundo com economias escaladas sob um modelo sistémico, mas é expectável que elas se decomponham num mundo em que a proximidade geográfica e a ideia de Estado-nação serão marcas de água da recuperação económica.
4. Reindustrialização e reconfiguração das cadeias logísticas. O continente que foi o berço da Revolução Industrial precisou de criar pontes aéreas com o outro lado do mundo para ir buscar máscaras, zaragatoas, ventiladores e outro material médico imprescindível, algum dele disputado entre países como no tempo dos corsários. Nunca como nestes dias foi tão evidente que a China é mesmo a fábrica do mundo. E esta crise expôs múltiplas consequências do processo de desindustrialização nas economias do capitalismo avançado, que se financeirizou e desmaterializou, tornando-se dependente de extensas cadeias de abastecimento e logística, assentes num único país, que não são racionais e têm uma enorme pegada ambiental. A reindustrialização das economias avançadas e a redução da sua dependência parece ser uma lição a extrair desta crise.
5. Novos-velhos paradigmas de trabalho. O dever de recolhimento, a distância social e a quarentena para os milhões de trabalhadores que conseguiram manter a sua actividade produtiva nesta crise significaram a descoberta de novas dinâmicas laborais, teletrabalho, ferramentas de videoconferência, entre outras. Na verdade, é um novo-velho paradigma, porque não há novidade nas ferramentas, que já existem há muitos anos, mas sim na obrigatoriedade funcional de as usarmos. Isso implicou a (re)descoberta da possibilidade de trabalho à distância e, mesmo num contexto de grande stress induzido por toda esta realidade, a possibilidade de compatibilização com outros tempos para o eu e para a família. É quase impossível que isto não se traduza em novos normais para muitas empresas. Os impactos serão múltiplos: menos tempo gasto em transporte, menos intensidade nas horas de ponta, novas tipologias de escritórios (com menos necessidade de espaço), novas perspectivas colaborativas propiciadas pelas tecnologias de informação, mas também menos organização colectiva dos trabalhadores, maior individualização, maior fluidez entre tempos de trabalhos e tempos de descanso, mais dificuldades para os sindicatos.
Simultaneamente, a crise está a criar uma nova legião de desempregados e, no seu rescaldo, temos de acudir simultaneamente ao desemprego e ao precariado. Para além destes, nunca podemos também esquecer aqueles trabalhadores dos serviços essenciais que agora nos parecem tão incontornáveis (o padeiro, o lixeiro, o caixa de supermercado…) e os outros, tradicionalmente invisíveis, dos sectores mais intensivos da Produção. Porventura estão a passar à ilharga desta crise nas suas rotinas adquiridas, mas não deixam de fazer parte da economia dos baixos salários para quem o teletrabalho e os novos paradigmas laborais parecem tão distantes como Marte. Aqui nada de novo, portanto: a crise é simétrica, mas os seus efeitos, como em todas as crises, são assimétricos.
6. Digitalizar, desmaterializar, (re)criar. A crise obrigou a um enorme salto na literacia digital para empresas e para o dia-a-dia de todos nós, mas é expectável que estas mudanças tenham vindo para ficar e envolvam outras realidades. A pandemia está a provocar um incremento do e-commerce, da logística de entregas porta a porta, dos pagamentos contacteless e da impressão/produção 3D. É expectável que o pós-crise traga mais algumas mudanças: veículos autónomos, mais peso da bioengenharia, dispositivos de monitorização de saúde e sinais vitais massificados no vestuário ou em gadgets, robotização (também nos hospitais), dispositivos de resposta por voz nas infra-estruturas e serviços do dia-a-dia, entregas de bens por drones, criptomoeda, etc.
7. Emergência climática. Muitos disseram que a Terra “respirou” durante a pandemia. É verdade, mas não é uma coisa boa. Isso resultou de uma catástrofe que se abateu sobre a Humanidade e precisamos de viver no planeta que é o nosso. Como espécie, não precisamos de lições morais resultantes de pandemias. Precisamos, sim, de cumprir com aquilo que nos diz a ciência e assegurar padrões de desenvolvimento assentes em critérios ambientais que não nos coloquem, a prazo, perante uma ameaça existencial irreversível. Não faltam avisos autorizados de cientistas e organizações internacionais, a começar pela ONU. Só na China a poluição causa 1,6 milhões de mortes prematuras. O confinamento, provocando um travão à poluição, poupou milhares de vidas humanas de acordo com diversos estudos. Por outro lado, o aquecimento global é uma realidade planetária alarmante e o degelo está a destruir o frágil equilíbrio dos nossos ecossistemas. Precisamos de acelerar as mudanças necessárias na nossa dependência de combustíveis fósseis e promover uma economia assente em lógicas de maior comunitarismo, com consciência da finitude dos recursos, sem que isso signifique empobrecimento. Fazê-lo não é uma opção porque não o fazer vai deixar-nos rapidamente sem opções.
8. Serviço de saúde como direito humano fundamental. Este postulado parece óbvio, mas não o é. A construção do moderno Estado Social e dos sistemas públicos – de Saúde, mas também de Segurança Social, de Educação, entre outros – foi uma dura luta ideológica que, nos últimos anos, colocou sob pressão e recuo muitos dos seus defensores. O avanço das ideias liberalizadoras, que são sempre ideias desiguais para quem, sem rendimentos, não tem verdadeira possibilidade de escolha, foi uma constante das últimas décadas. Há muitas razões históricas para isso. Mas o que hoje parece inequívoco é que o combate a esta pandemia seria impossível sem um sólido sistema de saúde, garantista e universal, tal como existe em Portugal. A saúde é um direito humano fundamental e a desigualdade no seu acesso vulnerabiliza toda a sociedade. Que saibamos continuar a preservar o nosso SNS e os seus profissionais.
9. Maior amplitude de recolha de dados sem menor amplitude democrática. Vários regimes, a começar pelo da Hungria de Orbán no continente europeu, estão a utilizar o combate ao coronavírus com um cavalo de Tróia de novos e mais sofisticados métodos de controlo autocrático da população. A utilização de georreferenciação obrigatória para identificar cadeias de transmissão voluntárias fere os nossos valores constitucionais e temos de conseguir que o medo não coarcte os nossos valores democráticos. Quaisquer soluções têm de assentar na garantia de anonimização e na privacidade dos utilizadores. O debate sobre a prevalência da vigilância digital será um dos mais importantes no mundo pós-covid.
10. Novas regras mundiais para limitar focos de zoonoses. Actualmente, estima-se que três em cada quatro novas doenças são zoonóticas. A sobreexploração de recursos naturais tem aumentado o risco dos humanos se tornarem hospedeiros de vírus que circulavam entre animais. Febre de Lassa, Ébola, SARS, MERS, Covid-19, só para dar exemplos historicamente recentes desde a segunda metade do século XX, têm origem em animais. Mas há outro ponto: a SARS em 2002, a gripe das aves em 2009 (H1N1) e agora o novo coronavírus, o 2019-nCO/covid-19, são vírus que não por acaso surgiram na China devido – consensualiza a ciência – às suas práticas de consumo de animais exóticos e selvagens ou à “medicina” tradicional chinesa. Hospedeiros como gatos civetas, morcegos e pangolins resultam dos designados mercados molhados chineses. Os infecciologistas e virologias alertam há muito tempo para a bomba-relógio que estas práticas representam, constituindo o caldo ideal para que as doenças se transmitam numa primeira fase entre as espécies e, depois, que se propaguem rapidamente pela mobilidade internacional a aviões a jacto antes que os centros de controlo de epidemias possam intervir – ou, em alguns casos, sequer saber da existência da doença. Esta prática não é exclusiva da China. Não devemos esperar pelo próximo vírus para, sem qualquer etnocentrismo, consensualizarmos regras globais entre todos os países que evitem desconhecidas ameaças existenciais sobre a Humanidade.