Dois olhares perante a injustiça
As crianças do Harlem da série da Netflix e o imigrante ucraniano que morreu no Aeroporto de Lisboa estavam dispostos a tudo e só queriam voltar a casa. Não queremos todos?
Numa sala escura em Nova Iorque, pancada atrás de pancada, escorrem lágrimas pelos olhos das crianças e adolescentes. Salto do conforto do meu sofá imaginando os pontapés, socos e bastonadas desferidos no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa. Lá longe, as crianças não-brancas acenam agora com a cabeça aos testemunhos falsos que lhes pedem para confirmar. Tremendo, assinam logo a folha que nem entendem. Por cá, Ihor não resistiu à dor das várias costelas partidas e dez horas depois morreu. As crianças do Harlem e o imigrante ucraniano estavam dispostos a tudo e só queriam voltar a casa. Não queremos todos?
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Numa sala escura em Nova Iorque, pancada atrás de pancada, escorrem lágrimas pelos olhos das crianças e adolescentes. Salto do conforto do meu sofá imaginando os pontapés, socos e bastonadas desferidos no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa. Lá longe, as crianças não-brancas acenam agora com a cabeça aos testemunhos falsos que lhes pedem para confirmar. Tremendo, assinam logo a folha que nem entendem. Por cá, Ihor não resistiu à dor das várias costelas partidas e dez horas depois morreu. As crianças do Harlem e o imigrante ucraniano estavam dispostos a tudo e só queriam voltar a casa. Não queremos todos?
Entre as paredes que me protegem, durante uma quarentena privilegiada, assisto à série da Netflix Aos Olhos da Justiça. Misturo a ficção com a realidade, capturado pelas batidas de Kiwanuka, numa produção que pode ser encarada não só como o remake dos Central Park Five mas também da morte verídica de um imigrante ucraniano, que morreu esquecido numa sala. Um estrangeiro sem papéis ou uma criança negra estarão sempre numa posição mais frágil perante o poder. Sabemos que há salas que ainda permanecem obscuras em 2020. A dignidade e direitos de alguns, logo apelidados de criminosos, são esquecidas dentro destes locais onde quem tem mais voz costuma usar e abusar dela. Porque pode. Até quando? Quantas crianças, mulheres e inocentes já sofreram sem nem sequer termos sabido? Quantas vezes já tínhamos ouvido falar nos noticiários do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa e do que por lá acontece? Nesta altura de pandemia, tudo vale para salvar vidas e a democracia encontra-se em suspenso. Convém que a justiça não tome o mesmo caminho.
Em suspenso ficaria também a sociedade se, por algum acaso, existisse uma câmara que tivesse filmado o arrepiante homicídio de um homem ucraniano, que deixa a mulher e dois filhos ainda à sua espera na terra natal, às mãos de três inspectores do SEF. Pude imaginar esses momentos enquanto assistia ao brutal interrogatório da série da Netflix que conta a história de cinco jovens afro-americanos que foram presos sem provas por uma violação que não cometeram. Vocifero de raiva em frente ao televisor expulsando toda a energia acumulada durante estes dias de férias insuportáveis. Faço quilómetros repetindo movimentos nos mesmos metros quadrados e sinto-me prisioneiro, tal como eles, de uma sociedade que ainda diferencia pela cor da pele, estatuto e conta bancária, produzindo assim seres humanos que são esquecidos, invisíveis e se tornam descartáveis. Neste momento somos todos iguais. Sem cores de pele, estatuto ou conta bancária que valha. Todos fechados e com medo. Será assim? Será que foi este o medo que Ihor Homeniuk sentiu nos últimos instantes em que respirava? Será sequer parecido com o que viveram as crianças do Harlem atrás das grades durante os anos de vida que lhes foram roubados? Não, claro que não, porque a eles já lhes tinham tatuado o destino de uma vida arruinada.
Reflicto ao longo da série sobre o conceito da verdade e que este não está relacionado com o que, por vezes, ocorre nos tribunais. Nos casos mediáticos, como estes, a construção de narrativas, mais ou menos persuasivas, são determinadas com vista a convencer a sociedade, o júri ou o juiz e todas as suas idiossincrasias. Utilizando para isso os seus preconceitos quanto a comportamentos, valores ou classes sociais. Um grupo de rapazes negros que percorra um parque durante a noite é associado logo à delinquência ou “wilding”. Um imigrante sem papéis que levante a voz à autoridade está ali mesmo a pedi-las, e nunca ninguém saberá o que se passou ali, na sala de no man´s land.
A esperança nas pessoas nasce quando encontramos alguém que, no momento certo, é capaz de se levantar e inspirar-nos. Como a realizadora desta série, Ava DuVernay, que forçou o debate público sobre o racismo na justiça americana. Recordo que em Portugal a tradição cultural obriga-nos a esconder estas histórias, somos ensinados que estes assuntos se resolvem melhor quanto menos falarmos deles. A prova disso é que só soubemos deste caso pois um heróico denunciante fez uma queixa anónima. Histórias destas fazem-nos questionar, não só a sanidade do ser humano, mas também deixam no ar: quantas mais histórias destas ficaram escondidas e estarão por contar?