Há 150 anos a ver o Tejo, do Rossio

Para quem passa no Rossio, não é fácil distinguir estes pormenores, mas a relação espacial do distante D. Pedro IV não se faz com os homens comuns; faz-se com aqueles com quem se compara. A sua estátua foi inaugurada há exactamente 150 anos.

Do Rossio não se vê o Tejo, ou alcança-se apenas uma difusa linha azul ao fundo da Rua Augusta ou da Rua do Ouro. Não é, porém, essa a sensação se estivermos a 27 metros de altura e no centro da praça, altitude e local exatos da estátua de D. Pedro IV. Deste ponto, equivalente a um nono andar, acima dos telhados do Rossio, não se vê apenas o rio (memória de água que recorda o Brasil onde Pedro foi feliz); vê-se também a estátua equestre de seu bisavô, o rei D. José, isolada no centro do Terreiro do Paço e símbolo da reconstrução de Lisboa após a destruição provocada pelo terramoto de 1755.

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Do Rossio não se vê o Tejo, ou alcança-se apenas uma difusa linha azul ao fundo da Rua Augusta ou da Rua do Ouro. Não é, porém, essa a sensação se estivermos a 27 metros de altura e no centro da praça, altitude e local exatos da estátua de D. Pedro IV. Deste ponto, equivalente a um nono andar, acima dos telhados do Rossio, não se vê apenas o rio (memória de água que recorda o Brasil onde Pedro foi feliz); vê-se também a estátua equestre de seu bisavô, o rei D. José, isolada no centro do Terreiro do Paço e símbolo da reconstrução de Lisboa após a destruição provocada pelo terramoto de 1755.

O contraponto entre ambos os monumentos é evidente. A majestática figura de D. José, a cavalo, representa o Antigo Regime, tempo de reis todo-poderosos e de ministros providenciais, imbuídos de poderes absolutos e capazes de erguer uma nova cidade exatamente sobre as ruínas de outra, semidestruída pelo sismo e definitivamente sepultada por um programa de demolições obrigatórias. Pelo contrário, a colossal coluna sobre a qual se ergue a estátua de D. Pedro IV paira acima da Baixa Pombalina e sobrepõe-se em pano de fundo a D. José, contrapondo ao absolutismo do século XVIII o liberalismo da centúria seguinte.

Foto
Construção da estátua ao rei Dom Pedro IV em Lisboa. Francesco Rocchini (1822-1895), 1870. Bibliothèque de l’Hôtel de Ville (Paris)

O sucesso do dia 11 de abril de 1870

O monumento foi inaugurado a 29 de abril de 1870, quarenta e quatro anos depois de D. Pedro IV ter concedido aos portugueses a Carta Constitucional, ato fundador do regime conhecido por Monarquia Constitucional, derradeira etapa da monarquia portuguesa. Foi o seu neto, o rei D. Luís, quem teve a honra de presidir à cerimónia. Entre as cerca de 20.000 pessoas que assistiram ao evento estava Elias Robert, o escultor que, cinco anos antes, havia ganho o concurso público internacional para a conceção do monumento, em parceria com o arquiteto Gabriel Davioud. O monarca descerrou simbolicamente o pano que cobria a estátua, gesto tão simples e tão contrastante com a gigantesca logística que, dias antes, havia permitido a colocação da estátua de bronze sobre a coluna.

Que o processo era difícil prova-se pelas memórias daquele dia 11 de abril de 1870. O fotógrafo Francesco Rocchini captou o exato momento em que a estátua foi içada no meio de um andaime de madeira, tão gigantesco como aparentemente frágil. Depois disso, foram depositadas numa pequena cavidade da base da estátua dois frascos com fotografias e documentos. Esses testemunhos daquele dia memorável foram descobertos em 2001 e receberam tratamento de conservação e restauro pelo então Museu da Cidade (hoje integrado no Museu de Lisboa). São apenas algumas das peças inéditas que o Museu de Lisboa – Palácio Pimenta terá em exposição, assim seja possível o retorno à atividade museológica.

Pedro IV e Maximiliano do México: mito urbano lisboeta

Não se sabe ao certo quando nasceu o mito que assegurava ser a estátua D. Pedro IV não uma representação do monarca português, mas uma do rei Maximiliano do México, falecido em 1867. A fábula foi desmontada em 1939, pelo historiador Francisco da Rocha Martins (e, antes dele, já Júlio de Castilho esclarecera qual o processo criativo para retratar o rei), mas permanece injustificadamente no imaginário lisboeta… não há nada mais enfadonho que uma história banal, por oposição ao mistério e à estupefação generalizada se o escultor Elias Robert tivesse enviado para Lisboa a representação de um exótico imperador mexicano, neto de Napoleão Bonaparte, e não a escultura do rei português.

Esta anedota não aconteceu. O resultado do concurso público para a construção do monumento foi anunciado em abril de 1865, com a ressalva expressa por parte do júri de que seriam enviados para Paris dados concretos a respeito da estátua. A versão final foi acompanhada pelo pintor Miguel Ângelo Lupi, que supervisionou os trabalhos. O monarca foi representado com a Grã-Cruz da Torre e Espada, insígnia recebida das mãos de sua filha, a rainha D. Maria II, escassos cinco dias antes de falecer, e ostenta orgulhoso a Carta Constitucional de 1826.

Para quem passa no Rossio, não é fácil distinguir estes pormenores, mas a relação espacial do distante D. Pedro IV não se faz com os homens comuns; faz-se com aqueles com quem se compara. O destinatário desta orgulhosa apresentação da Carta era o rei D. José, consumando-se assim de forma definitiva o contraponto entre o novo tempo constitucional e o absolutismo, entre o Rossio e o Terreiro do Paço.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico