Os deserdados do flagelo
Naturalmente que estas mudanças, aceites ou não, arrastarão consigo consequências, ainda difíceis de antever na hora atual, que, admitimos, que não afetarão todos de igual modo.
Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos
Albert Camus. A Peste, 1947
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Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos
Albert Camus. A Peste, 1947
O silêncio mudo e avassalador, involuntário, assusta e é temido pelo habitante das sociedades contemporâneas, intrinsecamente ruidosas, que, de vários modos, sempre o excomungaram a favor da utopia de uma comunicação total e de uma tagarelice nervosa e despida de sentido reflexivo. O silêncio ensurdecedor das ruas desertas, as casas e as cidades silenciosas, o sofrimento solitário dos contaminados e o pânico dos ainda não-contaminados, a ansiedade, a angústia em crescendo, a desolação infinda, enfim, os rostos transidos de medo desfigurando-se à medida que o tempo infestado se prolonga numa incerteza crescente e arruinadora no interior das relações intersubjetivas (particularmente no seio dos casais, das famílias, apenas estes parcos exemplos..., mesmo até de círculos sociais mais alargados), que, à semelhança de um grito estridente, tudo arrasta e tudo destrói à sua passagem, particularmente a esperança de que vamos ficar todos bem um dia…: “O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau são os homens que passam” (Albert Camus, A Peste, 1947).
Uma peste voraz e avassaladora que se estende até à intimidade de um eu e de um nós, enterrando-se cruelmente nas nossas entranhas mais profundas e deixando-nos numa solidão sem fim…! Todo um flagelo e um silêncio frio que reenvia para a futilidade e o vazio de uma existência vivida sem sentido numa “Idade de Ouro”, senão mesmo um novo Éden, com a promessa de felicidade universal e de uma certa imortalidade que lhe estão associadas, que agora se vieram a revelar tão ilusórias como necrófilas. Uma “Idade do Ouro” que fez da santa aliança, forjada entre o tecno-capitalismo (eventualmente “capitalismo numérico [leia-se digital]”, na designação de José Gil) e a tecnociência, a sua pedra angular e o seu cântico de sereia mortal! Enfim, uma “nova religião”, filiada numa crença no progresso ilimitado e na perfetibilidade indefinida do humano, que em tempos de globalização e de neoliberalismo oferecia e prometia uma felicidade universal na condição de os novos crentes cultivarem a indiferença, o egoísmo, a divisão e o esquecimento de si e do Outro. Uma “nova religião” cujo reino era uma nova “Metrópolis” (recordando o clássico e tão atual filme de Fritz Lang, de 1927) unidimensional, bio-tecnologizada, totalitária, sem amor e sem esperança!
Num tempo farto de abundâncias tão diversas como espalhafatosas, dominado pela omnipresença e omnipotência dos seus deuses tecnológicos e científicos (utopia tecnológica e digital, inteligência artificial, hiperconsciência digital …), da sua quase invencibilidade económica e industrial, as sociedades atuais viram-se repentinamente assoladas pelo flagelo de uma peste pandémica, causada por um novo e mortífero coronavírus, chamado SARS-CoV-2, que praticamente surpreendeu e paralisou a sociedade global: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas” (Albert Camus. A Peste, 1947). Uma peste que não é só vivida clinicamente, como também, e não é de somenos importância, ao nível do imaginário e das emoções, tanto individuais como coletivas. Um tipo de imaginário, de tão fragilizado que está, é sempre passível de produzir temores, pavores e monstros arcaicos que inelutavelmente acabam por ferir um consciente já contaminado pelo medo, pelo pânico que dele decorre, assim como por um pessimismo trágico que sempre bate à porta em momentos de crise e de vivência apocalítica. Uma infeção, como sabemos, não é somente vivida clinicamente (nível da consciência – esfera diurno). Ela é também, e muito enfaticamente, ficcionada, mitologizada (nível do inconsciente individual e coletivo – esfera noturna). O medo e o pânico de ser infetado pela covid-19 faz deste coronavírus uma espécie de génio maléfico que, pela sua estrutura e existência, se assemelha à de um morto-vivo como se, aliás, de um vampiro, sob forma de morcego qual Drácula (Bram Stoker, 1897), se tratasse.
Daí que o sentimento de impotência para se deter esta nova peste espalhada por todos os cantos de uma Terra, desde há muito enferma pelas mudanças climáticas, pela desflorestação, pelo aquecimento global, pela desertificação, subida dos níveis do mar, degelos, etc…, seja tanto universal como transversal política e socialmente. Ela é encarada e vivida como uma pandemia mortífera e como uma obsessão maléfica de tal amplitude que tudo o demais seja por si sepultado e esquecido. Tão esquecido que a sociedade da opulência tecnológica, económica, envolvida pelos cânticos transhumanistas de vários matizes, pareceu, pelo menos aparentemente, não só ter esquecido a lição e a memória de todo um complexo de vírus responsável por muitos dos surtos mais destrutivos dos últimos cem anos (as gripes de 1918, de 1957 e de 1968; e a SARS, a MERS e a Ébola), como também ter esquecido os valores da compaixão pelo próximo, da escuta, da generosidade, da gratidão, da tolerância, da esperança, da empatia, da prudência, da responsabilidade, da paz, entre outros. Ao iludir-se com a imortalidade e como o cimo das nuvens, de que o homem seria eternamente um novo deus na terra (os velhos mitos de Prometeu e de Ícaro), a humanidade esqueceu inadvertidamente o chão que pisa e a sua consequente fragilidade de que “do pó viemos e ao pó voltaremos” (Gn. 3: 19).
Temos, na verdade, que fazer desta vivência trágica, que naturalmente ninguém queria, uma ocasião de redenção lúcida a fim de não cairmos permanentemente na armadilha de que “tudo vai ficar bem” pela simples razão de que é essa mesma ilusão que contribuirá fatalmente para a nossa perdição! Por isso, torna-se assim imperativo compreender que, por um lado, nada ficará como dantes, não vamos ficar bem, tudo será diferente ao ponto de, muito provavelmente, a existência não passar de um trágico simulacro e isto, por si só, não deixar de ser francamente aterrador. Naturalmente que estas mudanças, aceites ou não, arrastarão consigo consequências, ainda difíceis de antever na hora atual, que, admitimos, que não afetarão todos de igual modo. Por tudo aquilo que viemos de escrever, particularmente retomando o nosso título, um tempo que atualmente vivemos, fustigado por um tão terrível flagelo, acentua em nós um sentimento trágico de deserdados, de orfandade de uma Esperança, ainda que ténue. A este respeito, recordando o mito de Pandora com sua famosa caixa ou jarro, estamos condenados, sim, a receber antes todos os males que dessa caixa escaparam, incluindo a peste vírica que nos contamina tiranicamente, exceto ao seu antídoto, o da Esperança. Uma Esperança redentora e salvífica que, à semelhança do Santo Graal, poderia transmutar, recordando um dos textos emblemáticos de Sören Kierkegaard, esta nova peste negra em “lírios do campo e em aves do céu”! E se tal acontecesse, desejamo-lo mais do que o esperamos, seria uma ocasião rara para espreitar por cima dos altos muros desta monumental crise e de tentarmos, pelo menos, reinventar a nossa condição humana tão em queda e tão em perigo. Uma reinvenção comprometida em mudar de paradigma que afinasse, como o pretende Hans Jonas, o agir humano com uma ética da responsabilidade. Pois só assim poderemos eventualmente merecer ainda ter mundo, e não um sem mundo, lembrando a obra de Günther Anders. Mensch ohne Welt (1984), que certamente nos despedaçaria à semelhança do génio maléfico que nos atormenta.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico