Quando os americanos cegaram com o pavor

Os cidadãos que agiram em conformidade com a sugestão de Trump, procuraram desesperadamente o alívio para o que não conseguem suportar.

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LUSA/Yuri Gripas / POOL

Não fosse o presente texto uma crónica que se pretende séria e eu iniciá-la-ia rindo. Na verdade, não fazia parte dos meus planos dedicar tempo a escrever sobre sequelas nem sobre heróis desmontados, sobretudo numa época tão nobre quanto a que vivemos. Porém, e como vou seguindo a realidade que se vai apresentando, vejo-me entre a espada e a parede, sem saída.

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Não fosse o presente texto uma crónica que se pretende séria e eu iniciá-la-ia rindo. Na verdade, não fazia parte dos meus planos dedicar tempo a escrever sobre sequelas nem sobre heróis desmontados, sobretudo numa época tão nobre quanto a que vivemos. Porém, e como vou seguindo a realidade que se vai apresentando, vejo-me entre a espada e a parede, sem saída.

No rescaldo da última semana em que escrevia sobre a Liberdade, tentando estimular os leitores à reflexão profunda sobre o que será ser livre agora, desafiando, no melhor sentido, a expansão da sua capacidade para pensar, de preferência de acordo com as respectivas crenças, valores, ideias e demais categorias acessórias, eis que surge um desafio inusitado do outro lado do mundo que abala, de uma só vez, essa possibilidade.

A sugestão trapalhona e imbecil de Donald Trump relativa ao consumo de desinfectantes como saída para o combate ao vírus, mais do que sem palavras para o adjectivar, deixou-me entorpecida no pensamento acerca do assunto, uma vez que, de imediato, o que me provocou foi uma espécie de nó górdio. Isto é, vi-me num lugar de incompatibilidade mental que não me permitia conjugar de forma alguma desinfectante doméstico com bebida consumível ou injectável. De imediato me ocorreu que seria um perigo maior ainda. A lixívia ou equivalente mataria mais, se ingerida, do que a covid-19. Seguramente.

Confesso que, rindo por dentro não o levei a sério. Pensei que Trump foi só risível e seria tudo. Todavia, quando as notícias começam a relatar a subida significativa de casos de intoxicação por ingestão daquelas soluções químicas, a vontade de rir desapareceu. De repente, o caso é sério e merece reflexão.

Uma boa e saudável capacidade para pensar comporta normalmente vários componentes, tais como boa ancoragem na realidade que se pretende bem diferenciada nos seus vários elementos; pleno exercício do sentido crítico; optimização da distância interior entre o que “é meu, sou eu” do que é exterior; flexibilidade no fluir dos pensamentos e na articulação com o que sentimos (emocional e afectivamente); criatividade com sentido de responsabilidade sobre nós e sobre os outros, uma vez que vivemos e somos seres sociais e relacionais.

Mas, nem sempre esta capacidade fundamental se apresenta na forma mais musculada em todos os indivíduos. Por diversas razões, alguns apresentam de forma dita mais estrutural uma capacidade para pensar tradicionalmente frágil, sendo que, ficam mais sujeitos a verem diminuída esta capacidade quando as circunstâncias do que vivem se mostram de natureza mais exigente.

Nestes termos, é possível que pela exigência excepcional da vivência da epidemia, muitos norte-americanos tenham visto abalado o seu discernimento. O terror e a angústia provocados pelo medo de morrer; a ignorância ou escassez de conhecimento científico pronto para por termo rápido ao vírus; a consequente inquietação que promove; a instabilidade emocional de um povo que, por vício narcísico e histórico, se sente agora diminuído no poder que se habituou a ter; o sentimento de desprotecção e impotência criam as condições para desenvolver um anti-pensamento, ou seja, tornar a capacidade de pensar num acto de agir, aderindo ao pensamento de outro que é investido como a autoridade maior – o salvador!

Os americanos cegaram com o pavor. Donald Trump revela aqui, talvez como nunca antes de forma tão clara e evidente, o ser inconsistente que é. Além do estilo que lhe conhecemos e de todas as considerações que opto por não fazer (por dever de respeitar as regras que regem a minha profissão), aos critérios que lhe podem ser atribuídos em termos de personalidade, o presidente norte-americano mostrou, com esta sugestão, a completa irresponsabilidade sobre o que diz e o que pode levar outros — pelos quais é responsável — a fazer. Revela o desnorte que o povoa tendo uma espécie de pensamento-acção-reacção para fazer face ao que não controla.

Quanto ao sentido de oportunidade, perdeu a possibilidade de continuar, com sucesso, a ser oportunista. De repente, perdeu a face de manipulador com crédito, deixando a questão em aberto de se será viável manter-se, de pleno direito, no lugar da autoridade máxima de um dos países mais fortes do mundo.

Os americanos que agiram em conformidade com a sua sugestão seguiram sem qualquer reserva o que o salvador lhes indicou. Procuram desesperadamente o alívio para o que não conseguem suportar. Perversamente, quem sabe alguns, mesmo que de forma inconsciente, através desse consumo pretenderam dizer que mais vale a auto-destruição!

Aconselho para complemento desta reflexão e em abono da manutenção da nossa saúde mental a leitura de Cândido, de Voltaire.