Resistir é humano. Mudar também
É tempo de mudar. De compreender, com humildade, que fazemos parte da natureza e de, em consonância, preparar o regresso a uma outra normalidade. Uma vida ambientalmente responsável não é sinónimo de sacrifício nem de escolhas difíceis. Bem pelo contrário.
A resistência à mudança encontra-se há muito identificada como um comportamento natural dos seres humanos, tendo sido descrita (Zaltman e Duncan, 1977) como “qualquer conduta que objectiva manter o status quo em face da pressão para modificá-lo”. Amplamente debatida no âmbito da teoria das organizações, por ser algo inevitável que tende a prejudicar as empresas, em nada difere da resistência comum em sociedade e que tende a atrasar o rumo da história. A figura do “Velho do Restelo”, criada por Camões e aceite quase como expressão popular, não é mais do que a brilhante personificação disso mesmo.
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A resistência à mudança encontra-se há muito identificada como um comportamento natural dos seres humanos, tendo sido descrita (Zaltman e Duncan, 1977) como “qualquer conduta que objectiva manter o status quo em face da pressão para modificá-lo”. Amplamente debatida no âmbito da teoria das organizações, por ser algo inevitável que tende a prejudicar as empresas, em nada difere da resistência comum em sociedade e que tende a atrasar o rumo da história. A figura do “Velho do Restelo”, criada por Camões e aceite quase como expressão popular, não é mais do que a brilhante personificação disso mesmo.
Ao longo dos séculos, as crises têm-se revelado motores da mudança, contribuindo para contrariar a dita resistência – acelerando processos civilizacionais, por definição lentos, e promovendo saltos para realidades melhores, porém adiadas. Por outras palavras, não criaram novos futuros, mas tornaram prementes preocupações e tendências que já se faziam sentir, abrindo olhos que insistiam em se manter fechados e quebrando obstáculos.
No cenário da actual pandemia, muito tem sido recordada a gripe pneumónica, que há precisamente um século infectou ¼ da população mundial, somando tragédia à tragédia, no final da 1.ª Guerra Mundial. Em Portugal, os números (incertos como os dos demais países) apontam para a morte de 60 mil a 135 mil pessoas, tendo as péssimas condições de vida de uma vasta parte da população contribuído para a sua enormidade.
A necessidade de se garantir condições de vida condignas à população mais desafortunada e, em concreto, à classe operária era já desde o século XIX uma recomendação do movimento internacional que viria a dar origem à Sociedade das Nações. Porém, só em 1918, no rescaldo de um surto de tifo ocorrido no ano anterior e em pleno surto da gripe pneumónica – que tornou evidente a vulnerabilidade das populações mais desfavorecidas que, por todo o país (tal como no resto do mundo industrializado), habitavam bairros degradados superlotados e sem condições de higiene –, o Estado português tomou a decisão de intervir directamente na construção de habitação acessível, ainda que num contexto de enormes dificuldades económicas, políticas e sociais.
Foram, assim, preocupações higienistas que estiveram na origem da proposta de construção de sete bairros operários (quatro em Lisboa, dois no Porto e um na Covilhã), dando início à construção de bairros de habitação social, há muito reclamados – sendo este um claro exemplo de uma mudança para melhor. É este processo que está na origem, por exemplo, do Bairro do Arco do Cego, em Lisboa (desviado dos seus propósitos iniciais com a queda da 1.ª República).
Procurando por significados, o termo “crise” surge descrito como o ponto de viragem, para melhor ou pior, num estado de saúde crítico. Outras definições reforçam este sentido apontando um evento emocionalmente significativo, promotor de uma mudança radical e um momento decisivo. Ao mesmo tempo, a palavra “emergência” tem origem no latim emergere, “erguer-se, trazer à luz”, resultando da junção entre ex-, “fora”, e a palavra mergere, que significa “afundar”.
Ambas as palavras têm ocupado demasiadas manchetes, sendo que já em 2019 lideraram os rankings internacionais como palavras do ano. E é certo que em 2020 não terão maior descanso. E isso, por si só, deverá dar-nos muito que pensar.
A crise de saúde a que assistimos é mais aguda, mas nem por isso mais preocupante do que a crise climática que já vivemos e que cada vez mais se anuncia. Mas ao contrário da segunda, que vamos construindo e que corremos um sério risco de só compreender inteiramente quando for tarde demais, a primeira surgiu como uma dramática ruptura (como é, aliás, característico das crises) e por isso proporcionou alterações que há apenas três meses seriam imponderáveis. Alterações essas que vieram obrigar-nos, individualmente e enquanto sociedade, a perspectivar modos de vida e a alinhar prioridades, de acordo com aquilo que é a moral que nos une enquanto humanidade.
Ao contrário desta pandemia, que na sua calamidade, ironicamente, se veste de recados – obrigando-nos a parar, a ter tempo para reflectir, a ser parte de um todo, a ocupar menos espaço, a aceitar a fragilidade da nossa própria natureza, a valorizar os mais velhos, a passar tempo com a família e a ver-nos restritos aos afectos digitais, com todas as suas lacunas –, a crise climática parece reunir todos os factores de inércia juntos. Matando devagar, mascarando-se de fenómenos naturais, incendiando países que são quase continentes, atingindo acima de tudo aqueles que não têm voz, contrariando o interesse dos bem instalados e contribuindo para guerras cuja origem se perde, a crise climática que aqui se resume, é uma crise silenciosa, como silenciosa é a doença que, tantas vezes, se descobre tarde demais.
Que a doença que hoje nos tem suspensos e agarrados aos jornais, pela dureza de atingir o mundo inteiro de uma assentada e de levar em poucos dias vidas que estavam para durar, nos ajude a ver a outra, que lhe serve de pano de fundo e da qual inevitavelmente resulta – já que a nossa relação com a vida selvagem e a destruição massiva de habitats é, como se sabe, a explicação dada pela comunidade científica para a migração de um vírus que, até aqui, só habitava em animais.
Porém, ver não basta. Há mais de 50 anos que a comunidade científica nos alerta para o impacto dos combustíveis fósseis e desde então não tem cessado de nos avisar para tantos mais. O tempo que tínhamos para ignorar, para negar, para desvalorizar, para adiar, para resistir à mudança foi gasto. O tempo para ir apagando fogos e resolvendo crises, uma a uma, como se não estivessem todas interligadas, já passou.
É tempo de mudar. De compreender, com humildade, que fazemos parte da natureza e de, em consonância, preparar o regresso a uma outra normalidade, crítica e com sentido. Onde sejamos capazes de exigir políticas que nos garantam horizonte e de aceitar, sem resistências umbilicais, mudanças cientificamente sustentadas e que entram pelos olhos adentro como elementares. Onde saibamos, também, fazer escolhas individuais conscientes, que passam por mudar o modo como nos movemos, nos alimentamos e consumimos.
Sabendo que, contrário do difícil equilíbrio entre saúde e economia que neste estranho mês de Abril se apresenta aos portugueses (emprestando-nos a sensação dum lençol curto), uma vida ambientalmente responsável não é sinónimo de sacrifício nem de escolhas difíceis, como alguns alvitram e muitos temem. Bem pelo contrário. É um contributo para uma economia mais justa e eficiente, com menos desperdício. É meio caminho andado para uma vida saudável. E é o garante de uma melhor qualidade de vida.
A retoma da economia não será fácil. Mas numa altura em que os apoios estatais serão determinantes para a sobrevivência de tantas empresas, é essencial que estes sejam estruturados de forma a potenciar uma economia mais verde, no interesse a todos. E que a sociedade, no seu conjunto, se capacite a ser parte da solução.