Cultura e Democracia: Uma conta corrente em aberto
Numa altura em que as limitações e os riscos são outros, e os autores e artistas vivem outro exílio e outras prisões, era essencial que o Portugal democrático se lembrasse o quanto deve à cultura e, cumprindo a Constituição, criasse verdeiros apoios que permitam, ao menos, a subsistência de largos milhares de autores, artistas, produtores, editores, técnicos e profissionais do espetáculo.
Não haverá muitos casos de revoluções armadas que tenham usado a canção (e a canção popular) para dar não só o inicio, mas também o mote à revolução. Não foi certamente por acaso. Na Grândola do Zeca vai todo um programa, à data, verdadeiramente revolucionário.
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Não haverá muitos casos de revoluções armadas que tenham usado a canção (e a canção popular) para dar não só o inicio, mas também o mote à revolução. Não foi certamente por acaso. Na Grândola do Zeca vai todo um programa, à data, verdadeiramente revolucionário.
Vai na letra e vai na genial recriação de José Mário Branco dos passos cansados do regresso da monda do operariado rural alentejano. Também esse ali está a marcar os passos dos soldados que naquela madrugada marcharam para acabar com “o estado a que Portugal tinha chegado”. Afinal era também em nome deles que a tropa marchava.
E foi assim que, ainda antes de serem tomados os principais bastiões do regime, o programa já estava na rua e no éter da rádio.
A solidariedade e fraternidade que a Grândola canta é a mesma à qual repugna o egoísmo arrogante que ignora a história e que usa o veto para garantir que os impostos sugados aos países do Sul da Europa não vão, afinal, socorrer o operariado cujo trabalho é a origem primeira da riqueza ilegítima que se recusam a partilhar. A solidariedade da Grândola é a solidariedade justamente indignada que se impunha ao primeiro ministro do regime democrático que nasceu naquela manhã de abril.
Mas, além desta feliz e seguramente premeditada coincidência poética, muito mais deve a democracia à cultura. Foram músicos e poetas, escritores e pintores, encenadores e atores, produtores e editores, que “saíram da sua zona de conforto” (como agora se diria), mas, antes de tudo, do desconforto ético que a ditadura lhes provocava, e que foram, tantas vezes e por tanto tempo a voz, o corpo e alma da longa resistência que, pela musica, pela palavra, pelas artes plásticas e pela ação, mantiveram acordadas as consciências na longa noite da ditadura.
É muito o que a Democracia lhes deve. É tudo. Alguns pagaram com a perseguição, outros com exílio, outros ainda com a prisão. Dias Coelho pagou com a vida, “naquele lugar sem nome para qualquer fim”, imortalizado noutra canção do Zeca, lugar esse que hoje tem o seu nome.
Talvez também por isto a primeira constituição democrática portuguesa, no seu artigo 78.º, consagra o direito universal à fruição e criação cultural e estabelece claros deveres do Estado em matéria de promoção cultural, “em colaboração com todos os agentes culturais”, na tão acertada quanto emblemática expressão do legislador constituinte. Mas ainda antes disso, consagra a liberdade de criação intelectual, artística e científica e institui o direito de autor como instrumento e núcleo essencial dessa mesma liberdade. Choca frontalmente com a Constituição uma cultura amordaçada.
Numa altura em que as limitações e os riscos são outros, e os autores e artistas vivem outro exílio e outras prisões, indiscutivelmente necessários, mas que os separam igualmente do seu público, era essencial que o Portugal democrático se lembrasse o quanto deve à cultura e, cumprindo a constituição, criasse verdeiros apoios que permitam, ao menos, a subsistência de largos milhares de autores, artistas, produtores, editores, técnicos e profissionais do espetáculo.
Assim o fizeram já outros países europeus, alguns deles, paradoxalmente, os que criam entraves à solidariedade com outros Estados-membros.
O apoio do Estado ao setor cultural não é um ato de caridade, muito menos uma esmola, é uma imposição constitucional, em qualquer situação, mas em particular numa fase de total estagnação, que será seguramente mais longa para o sector cultural que para a generalidade da economia. Trata-se afinal de reconhecer o óbvio: o sector cultural não pode subsistir se ficar abandonado, pelo Estado, aos desígnios da pandemia e da crise que esta arrastou.
Trata-se também de reconhecer a essencialidade da cultura para a construção da democracia hoje e no futuro, como o foi antes do 25 de Abril de 74.
E numa altura em que “a corja” já “topa pela janela”, escondida atrás dos postigos semicerrados, com medo da covid, à espera que a crise se agrave, mais que nunca voltaremos a precisar de uma cultura livre, plural e ativa, para a construção do Portugal verdadeiramente democrático.
Nota: Este artigo é escrito em nome pessoal e não traduz a posição de organizações do sector cultural que o autor integra e nas quais assume responsabilidades.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico