Em dias de isolamento por causa da covid-19, como tornar o intestino num aliado?

O intestino influencia os sistemas nervoso, imunitário e até hormonal. Mas, em tempos de confinamento, o seu mau funcionamento é uma das queixas mais comuns.

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A alimentação variada pode ser uma forma de ultrapassar as desregulações intestinais Brooke Lark/Unsplash

Há mais de um mês que o país foi para casa, mantendo um isolamento para controlar o surto de covid-19, mas que tem tido influência em vários aspectos da vida, sendo que uma das queixas comuns passa pela alteração do funcionamento do intestino. Isso explica-se pelo facto de “o confinamento social modificar as rotinas do dia-a-dia”, explica o gastrenterologista Luís Carvalho Lourenço, em declarações ao PÚBLICO.

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Há mais de um mês que o país foi para casa, mantendo um isolamento para controlar o surto de covid-19, mas que tem tido influência em vários aspectos da vida, sendo que uma das queixas comuns passa pela alteração do funcionamento do intestino. Isso explica-se pelo facto de “o confinamento social modificar as rotinas do dia-a-dia”, explica o gastrenterologista Luís Carvalho Lourenço, em declarações ao PÚBLICO.

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“O intestino é um órgão fantástico” (Mafalda Rodrigues de Almeida, nutricionista) DR

“[O confinamento social] exige uma diminuição do contacto afectivo, da redução da actividade física habitual” e implica “algumas alterações dietéticas e expor as pessoas a stress psicológico e físico, nalguns casos”. Alterações que podem afectar “todo o tubo digestivo, incluindo naturalmente os intestinos, e as glândulas anexas (fígado, vesícula e pâncreas)”. E, caso estas alterações não sejam ajustadas, “de uma forma prolongada no tempo, causam mau estar e têm um impacte negativo na qualidade de vida”. Entre os vários sintomas, a “azia, enfartamento após as refeições, desconforto e distensão abdominal, aumento exagerado do número de dejecções por dia (diarreia) ou, pelo contrário, dificuldade em ir à casa de banho evacuar (obstipação)”, distingue o médico que presta serviço nos hospitais CUF Infante Santo, Cascais e Sintra.

Porém, alerta o também gastrenterologista Paulo Fidalgo, do Centro Clínico Champalimaud​, “o confinamento, mesmo debaixo das regras estritas do estado de emergência, não impede a prática de exercício”.

É, aliás, o exercício que pode ajudar a regular de todo o aparelho digestivo: “O sedentarismo, e nomeadamente a permanência em posição sentada/deitada várias horas por dia (muito mais do que o habitual), é um dos principais factores indutores de trânsito lento, o que se pode reflectir em obstipação”, explica Luís Carvalho Lourenço.

Paulo Fidalgo enumera “os mínimos recomendados pela OMS como condicionando ganhos relevantes em saúde”: “150 minutos por semana de exercício moderado, marcha; ou, em alternativa, 75 minutos de exercício vigoroso, por semana”, especificando que “o critério de vigoroso aqui é o de ficar a suar e tanto pode ser alcançado com corrida, como com exercícios de aparelhos, colchão ou passadeira”.

Um segundo cérebro

Sendo “um sistema de órgãos com amplas terminações nervosas (daí até já lhe ter sido dado o nome de ‘segundo cérebro’), o normal funcionamento dos nossos intestinos é necessário ao equilíbrio do organismo”, explica Luís Carvalho Lourenço.

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“Por alguns dias, não ir trabalhar pode significar uma pausa de sabor retemperador.” (Paulo Fidalgo, gastrenterologista e coordenador do Programa de Avaliação de Risco do Centro Clínico Champalimaud) DR

Em declarações ao PÚBLICO, a nutricionista Mafalda Rodrigues de Almeida, autora de Equilíbrio – O Guia de Receitas Para Um Intestino Saudável (Edições Chá das Cinco, 2018) e fundadora do site Loveat, não poupa elogios ao mesmo sistema: “O intestino é um órgão fantástico que interage com o nosso cérebro e influencia os nossos sistemas nervoso, imunitário e até hormonal”, relata. “É no intestino que são produzidas hormonas como a serotonina (conhecida como a hormona da felicidade que ajuda a regular também o nosso sono e o apetite) e a colecistocinina, e ainda alguns ácidos gordos produzidos pelas nossas bactérias intestinais”, explica a especialista, indicando que estas “são muito importantes no controlo tanto da ansiedade como da depressão”.

É assim uma espécie de pescadinha de rabo na boca. A situação do isolamento provoca stress que pode alterar o funcionamento do intestino que, em caso de desregulação, poderá contribuir para o aumento do estado de ansiedade.

Se esse for o caso, a nutricionista chama à atenção para a necessidade de diminuir a causa, i.e., a ansiedade: “A primeira intervenção deverá ser diminuir [a ansiedade], através da prática de exercícios mais relaxantes, de actividades que gostamos, de bons hábitos de sono ou até do acompanhamento profissional adequado”. Também o gastrenterologista Luís Carvalho Lourenço considera que “a ansiedade pode ser combatida com a actividade física, outras actividades lúdicas e culturais do interesse de cada um e o contacto à distância com amigos ou familiares”.

Já para Paulo Fidalgo, que admite que “o confinamento pode agravar estes fenómenos [de sintomas intestinais associados a factores psicossociais], pela percepção de ameaças e pelas dificuldades de relacionamento que o distanciamento social implica”, a situação pode também “funcionar ao contrário”. “Por alguns dias, não ir trabalhar pode significar uma pausa de sabor retemperador.”

Ajuda à mesa

Os bons hábitos alimentares serão uma das ferramentas para combater quer a obstipação quer a síndroma do intestino irritável — ainda que, nestes últimos, “os conselhos alimentares devam ser individualizados”, alerta o também coordenador do Programa de Avaliação de Risco do Centro Clínico Champalimaud Paulo Fidalgo, em entrevista ao PÚBLICO, que aponta a dieta mediterrânica como “estratégia de prevenção do cancro”.

Numa situação de confinamento, os vários especialistas aconselham a ingestão diária de mais de 1,5 litros de água (o equivalente a oito copos), manter uma dieta equilibrada consumindo alimentos ricos em fibra (fruta e vegetais, por exemplo), em gordura monoinsaturada e polinsaturada em quantidades equilibradas (azeite, abacate, frutos secos como amêndoas, noz macadâmia, castanha do Brasil, noz e avelã), ao mesmo tempo que se deve evitar o consumo excessivo de alimentos ricos em açúcar ou em gordura.

Luís Carvalho Lourenço especifica ainda a inclusão da “sopa em algumas refeições diárias”, cuja rotina deve ser mantida, enquanto o clínico Paulo Fidalgo avisa para que se fique longe da “comida processada e take-away”.

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"O medo pelo risco de infecção de covid-19 ao contactar com os serviços de saúde não deverá prevalecer quando esse risco for claramente inferior ao benefício" (Luís Carvalho Lourenço, gastrenterologista nos hospitais CUF Infante Santo, Cascais e Sintra ) DR

Além das rotinas das refeições, Mafalda Rodrigues de Almeida chama a atenção para o facto de ser “importante manter também um horário de casa de banho”. “Apesar de parecer estranho, o nosso organismo é rotineiro e a manutenção de um horário, tal como um horário de dormir ou fazer refeições, é essencial para um funcionamento intestinal equilibrado.”

Sinais de alarme

No entanto, para lá do desconforto, Luís Carvalho Lourenço considera que “a maior parte dos sintomas gastrointestinais que surgem nesta altura serão ligeiros, temporários”. A não ser que surjam os sinais de alarme que, para Paulo Fidalgo, “não são específicos do confinamento e do estado de emergência — mas este estado, não protege nada contra o seu aparecimento”.

Entre as possíveis queixas estão “vómitos, dificuldade em engolir, emagrecimento, perdas de sangue, mudança inesperada do comportamento intestinal, uma diarreia que não existia ou uma obstipação agravada ou começada sem explicação”. Em qualquer situação deste género “não há que hesitar em contactar os serviços de saúde”, sublinha o especialista.

“Actualmente, e de uma forma geral, os serviços de saúde dispõem de circuitos distintos para o tratamento de doentes suspeitos/infectados por covid-19 e para doentes com outras patologias”, esclarece o médico dos hospitais CUF. “Assim, o medo pelo risco de infecção por covid-19, ao contactar com os serviços de saúde, não deverá prevalecer quando esse risco for claramente inferior ao benefício.”