Telépolis, a distância, a velocidade e a ressonância
O grande desafio que nos lança a época atual, em pandemia e pós-pandemia, é o de saber como é possível restaurar espaços, atmosferas e eixos de ressonância, de modo a poder dizer: quando o mundo ou o outro falam, eu escuto-os e vibro com eles; quando eu falo, o mundo e os outros escutam-me e podemos vibrar em conjunto.
Em 1994, num livro intitulado Telépolis, o filósofo espanhol Javier Echeverría descrevia nestes termos o perfil dessa nova forma de polis ou de cidade à distância que então se ia consolidando na sua emergência: “Telépolis não está assente sobre um território bidimensional que pudesse ser cercado por círculos concêntricos e vias de saída, nem é reduzível a um conjunto de volumes edificados sobre tal planta: não tem perspetiva visual, nem geografia urbana desenhável sobre um plano. É multidimensional pelo seu próprio desenho e nem sequer a partir do alto é possível aceder a uma visão global da nova cidade. Para nos orientarmos minimamente nela já não valem os antigos mapas de cidades: há que recorrer a múltiplas bases de dados, cada uma das quais nos oferece apenas um corte ou aspeto. As possíveis delimitações que se proponham na nova cidade já não estarão baseadas na distinção entre interior, fronteira e exterior, nem, portanto, nas parcelizações do território, mas em estruturas reticulares, arborescentes e inclusivamente selváticas, sem prejuízo de que na imensa complexidade futura possamos chegar a distinguir novas formas de identificação e de classificação rigorosamente estruturadas. Para começar a investigar esta nova estruturação do espaço social, utilizaremos inicialmente um recurso puramente metafórico, mostrando que as componentes clássicas de uma cidade (as suas casas, os seus quarteirões, os seus bairros, as suas ruas, as suas praças, os seus subterrâneos, os seus cemitérios, as suas vias de saída e de entrada) mudaram radicalmente, ao perder o primado um conceito extensivo da polis e ao modificar-se a sua estrutura topológica.”
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Em 1994, num livro intitulado Telépolis, o filósofo espanhol Javier Echeverría descrevia nestes termos o perfil dessa nova forma de polis ou de cidade à distância que então se ia consolidando na sua emergência: “Telépolis não está assente sobre um território bidimensional que pudesse ser cercado por círculos concêntricos e vias de saída, nem é reduzível a um conjunto de volumes edificados sobre tal planta: não tem perspetiva visual, nem geografia urbana desenhável sobre um plano. É multidimensional pelo seu próprio desenho e nem sequer a partir do alto é possível aceder a uma visão global da nova cidade. Para nos orientarmos minimamente nela já não valem os antigos mapas de cidades: há que recorrer a múltiplas bases de dados, cada uma das quais nos oferece apenas um corte ou aspeto. As possíveis delimitações que se proponham na nova cidade já não estarão baseadas na distinção entre interior, fronteira e exterior, nem, portanto, nas parcelizações do território, mas em estruturas reticulares, arborescentes e inclusivamente selváticas, sem prejuízo de que na imensa complexidade futura possamos chegar a distinguir novas formas de identificação e de classificação rigorosamente estruturadas. Para começar a investigar esta nova estruturação do espaço social, utilizaremos inicialmente um recurso puramente metafórico, mostrando que as componentes clássicas de uma cidade (as suas casas, os seus quarteirões, os seus bairros, as suas ruas, as suas praças, os seus subterrâneos, os seus cemitérios, as suas vias de saída e de entrada) mudaram radicalmente, ao perder o primado um conceito extensivo da polis e ao modificar-se a sua estrutura topológica.”
Isto foi dito em 1994. Cinco anos depois, em 1999, em Los señores del aire. Telépolis y el tercer entorno, o mesmo filósofo apresentava vinte características desta nova polis, a telépolis, ou cidade à distância e do seu tipo de ambiente, designado “tercer entorno”, por se diferenciar do primeiro, o ambiente natural, e do segundo, o ambiente técnico e urbano. Nesse livro, faz assentar a distinção entre os dois primeiros ambientes e o último, e entre as primeiras formas da pólis e a última, no facto de a telépolis não se basear já numa conceção recintual de espaço, mas reticular, de a sua unidade básica não ser material ou o indivíduo na sua corporalidade, mas a unidade de informação e de, por isso, a comunicação se realizar à distância por fluxos de informação e não 2 num regime de presença e de proximidade, sendo a velocidade uma das principais características da circulação à distância e a lentidão a principal característica da circulação em proximidade.
Pode considerar-se a telépolis como a última forma de configuração da polis, no final de um percurso que começa pela polis grega, baseada na circunscrição espacial e na presença física dos cidadãos, com o seu centro na ágora; esse percurso passa pela cosmópolis do helenismo, que se caracteriza pelo alargamento do império, por ágoras policêntricas e pelo cruzamento de culturas em cada uma delas; passa depois pela theópolis da cristandade em que o centro se desloca das ágoras para as igrejas, as catedrais, os mosteiros e as abadias; passa depois pela antropópolis do Renascimento, cujos centros são os palácios dos príncipes, as chancelarias, as academias e as oficinas dos artistas; à antropópolis sucede a tecnópolis da Modernidade, com os centros industriais como base da vida social e económica e as universidades como capitais do saber, sendo a economópolis com a centralidade dos bancos uma das suas metamorfoses. É esta tecnópolis que se transforma em telépolis no final do século XX e no início do século XXI, já sem centro, porque a sua estrutura não é topológica nem recintual, não assenta no espaço, mas é reticular e, por natureza, infinitamente policêntrica, como a esfera dos místicos cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte alguma. Por esse motivo, há uma diferença estrutural entre as anteriores formas de pólis e esta nova forma de telépolis, porque todas as outras supunham o espaço físico, a noção de fronteira, a sua materialidade e a telépolis prescinde desses pressupostos.
É certo que vivemos em telépolis já há algumas dezenas de anos. Mas enquanto a vivência da telépolis nas suas primeiras fases era compatível com a vivência de outras formas de pólis (mantendo-se a coexistência com formas de polis clássica, theópolis, antropópolis e tecnópolis), o que estes últimos meses nos têm mostrado é a necessidade de, enclausurados, termos de viver em telépolis, prescindindo das outras formas de pólis assentes na circunscrição e na presença territorial, e vivendo quase apenas e puramente à distância, praticamente sem qualquer mediação entre oikos ou domus (casa) e a telépolis. Prescindimos das ágoras e das catedrais na sua realidade física, prescindimos da presença em unidades-básicas da produção, do comércio, da economia, das finanças e da educação, e somos convidados a reaprender a viver apenas à distância.
Convém, assim, perguntar, o que perdemos com aquilo de que prescindimos e o que ganhamos com aquilo que conquistamos. Ganhamos imaterialidade, em certo sentido, e com ela ganhamos velocidade e ubiquidade da nossa presença simbólica, dado que a nossa representação virtual pode estar simultaneamente em Portugal, em Itália e em qualquer outro país ou continente. E com a velocidade ganhamos aceleração, que, na leitura fina de Hartmut Rosa, é uma das principais características da Modernidade tardia e uma das principais fontes da alienação humana da atualidade: aceleração técnica, aceleração das mudanças sociais e aceleração existencial dos nossos ritmos de vida íntimos e pessoais. Mas perdemos tudo o que não tem imediatamente a ver com os dois sentidos do ouvido e da visão: o que tem a ver com o tato, com o olfato e com o gosto. E perdemos também a lentidão, que é o tempo da germinação criativa e da assimilação, o tempo dos afetos e do amor, o tempo da natureza, que Lamberto Maffei meditou no seu Elogio della lentezza; perdemos o peso, que é a dimensão da corporeidade e da densidade conceptual, perdemos a capacidade de sentir a temperatura, ou seja, o calor dos outros e dos acontecimentos, perdemos a noção do invisível e do mistério que nos remete para o outro lado do que nos é acessível e do que está à nossa disposição, e perdemos até a capacidade de escuta que não é fácilmente compatível com a velocidade e com a aceleração. Diria, por isso, também com Hartmut Rosa, filósofo da Universidade de Jena, que perdemos a capacidade de ressonância (que ele propõe como antídoto à aceleração), de entrar em ressonância com o mundo e com os outros, com a natureza e com o que a transcende, com o tempo e com as suas infinitas modulações, com os afetos e as teias que eles entretecem. Por isso, o grande desafio que nos lança a época atual, em pandemia e pós-pandemia, é o de saber como é possível restaurar espaços, atmosferas e eixos de ressonância, de modo a poder dizer: quando o mundo ou o outro falam, eu escuto-os e vibro com eles; quando eu falo, o mundo e os outros escutam-me e podemos vibrar em conjunto. Uma ressonância interior e autêntica e não meramente mecânica e pandémica, como parece ser a que atualmente vivemos.
O que vamos fazer com o tempo que o tempo agora nos ensina?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico