O sistema imunitário e as vitaminas

Há duas vitaminas que têm estado muito em voga pela sua importância para o sistema imunitário e pela confusão generalizada devido à falta de consenso científico em relação às suas necessidades e eventual suplementação. São elas a vitamina C e a vitamina D.

Foto
Getty Images

O momento que atravessamos é fértil em tratamentos e recomendações mais ou menos alternativas e mais ou menos milagrosas, até porque não havendo uma vacina ou medicação realmente eficaz, aumenta a procura incessante de soluções que possam atenuar a evolução desta pandemia. Neste artigo vamos falar com detalhe de duas vitaminas que têm estado muito em voga pela sua importância para o sistema imunitário e pela confusão generalizada devido à falta de consenso científico em relação às suas necessidades e eventual suplementação. São elas a vitamina C e a vitamina D.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O momento que atravessamos é fértil em tratamentos e recomendações mais ou menos alternativas e mais ou menos milagrosas, até porque não havendo uma vacina ou medicação realmente eficaz, aumenta a procura incessante de soluções que possam atenuar a evolução desta pandemia. Neste artigo vamos falar com detalhe de duas vitaminas que têm estado muito em voga pela sua importância para o sistema imunitário e pela confusão generalizada devido à falta de consenso científico em relação às suas necessidades e eventual suplementação. São elas a vitamina C e a vitamina D.

A vitamina D tem um papel importante no sistema imunitário como demonstra o facto de existirem receptores para esta vitamina e enzimas responsáveis pela sua hidroxilação em monócitos, macrófagos, neutrófilos e linfócitos T e B. Existe evidência em atletas, militares e população geral de que níveis de vitamina D - 25(OH)D - acima de 30 nmol/l (ou 12ng/ml) podem reduzir a incidência de infecções do trato respiratório superior (nariz, faringe, laringe). Note-se ainda assim que a infecção por covid-19 afecta principalmente o tracto respiratório inferior, ou seja traqueia, brônquios, pulmões.

Duas meta-análises recentes (com algumas limitações metodológicas que não vale a pena esmiuçar neste artigo) apontam no mesmo sentido. A redução do risco de infecções respiratórias agudas com a suplementação em vitamina D é muito marginal, mas existe, sendo a magnitude do seu efeito bem maior nos indivíduos com níveis de base de vitamina D abaixo de 25nmol/l. A particularidade da vitamina D em relação a outros nutrientes é que a prevalência do seu défice é maior. Estamos longe de falar de uma “pandemia” de défice de vitamina D, mas certo é que mesmo assumindo um ponto de corte próximo ao da redução das infecções respiratórias nos estudos citados (<25nmol/l, ou <10ng/ml), a prevalência de défice em Portugal é de 21,2% subindo para 66,6% quando se ajusta esse ponto de corte para os 50nmol/l.

Outra particularidade é que este défice é ainda mais acentuado a partir dos 70 anos (precisamente o maior grupo de risco para a covid-19) até porque a nossa capacidade em sintetizar vitamina D a partir da exposição vai diminuindo com a idade. Ou seja, as notícias que vieram a público que constataram que uma boa percentagem dos infectados que necessitaram de internamento hospitalar tinham baixos níveis de vitamina D mais não são do que um enviesamento da amostra (são os idosos que mais precisam de internamento após a infecção) e uma constatação de que o défice desta vitamina nos idosos é mais prevalente do que noutras faixas etárias.

Ora, isto não permite de todo concluir que são os baixos níveis de vitamina D que estão na causa da infecção. Reconhecendo estes dados, o que fazer? Apesar da suplementação em vitamina D ser bastante barata, a sua análise clínica já não o é tanto. Na dúvida, e até porque a toxicidade da vitamina D está associada a uma suplementação crónica acima de 4000 UI/dia que leve os níveis plasmáticos a atingir valores de 50-150 ng/ml, uma recomendação consciente seria na ordem das 1000-4000 UI diárias (a biodisponibilidade de cápsulas e gotas parece ser semelhante), dependendo sempre dos valores de vitamina D no sangue (caso tenham sido doseados) e de outros factores: desde logo a idade do indivíduo (idosos precisam de maior quantidade), a exposição solar (há pessoas com varanda que trabalhando em casa até podem ter maior exposição solar do que se estivessem no seu local de trabalho original), a dieta (Portugal não tem o hábito de fortificar alimentos em vitamina D e as fontes alimentares resumem-se praticamente aos peixes como sardinha, truta, goraz, corvina e salmão que convenhamos ninguém come todos os dias) e o peso (indivíduos com excesso de peso e obesidade têm maiores necessidades de vitamina D).

Fumadores e indivíduos negros podem também precisar de maiores quantidades, mas a constatação de que atletas negros possuem baixos níveis de vitamina D sem nenhuma consequência fisiológica (eventualmente por terem maiores níveis de vitamina D livre em circulação), abre ainda mais outro tópico de discussão e investigação neste tema sempre controverso.

A recomendação para “apanhar 5 a 10 minutos de sol diários” é uma recomendação algo preguiçosa e que apenas serve como descargo de consciência para quem a faz. Em primeiro lugar porque há quem não consiga apanhar sol diariamente ou até quem não goste (por oposição aos que gostam de mais e infelizmente até utilizam solários com risco acrescido para cancro pele). Depois, porque em Portugal apanhar sol em Janeiro ou Fevereiro não é a mesma coisa que em Julho ou Agosto. À latitude de 39,5ºN (equivalente ao centro de Portugal), são necessárias mais de 2 horas de exposição solar de 10% corpo (cara, pescoço e mãos) a uma radiação equivalente à existente entre as 11h30 e 12h30, para produzir 1000 UI de vitamina D em Janeiro. Este valor diminui para 31 minutos em Outubro, 11 minutos em Abril e 7 minutos em Julho. Tal, vai de encontro à menor prevalência de défice verificado no Verão em comparação a todas as outras estações, pois mesmo na Primavera e Outono a situação não melhora substancialmente.

Foto
Getty Images

Ou seja, convém não cair no ultra-cepticismo de que a suplementação em vitamina D é sempre inútil, mas é sobretudo fundamental não entrar na senda “anti-aging” das megadoses de vitamina D porque neste caso, mais nem sempre é melhor. Não parece haver nenhum benefício adicional para valores superiores a 50 ou 75nmol/L de vitamina D em circulação, e a suplementação excessiva pode até aumentar ligeiramente o risco de cálculo renal (quando suplementada em conjunto com carbonato cálcio), o risco de quedas em idosos (sobretudo com grandes quantidades mensais ou anuais em vez de suplementação diária ou semanal) e podem também aumentar a mortalidade por doença cardiovascular.

No caso da vitamina C, esta desempenha também um papel muito importante no nosso sistema imunitário. Encontra-se em grandes concentrações nos nossos glóbulos brancos, e os seus níveis diminuem consideravelmente durante uma constipação ou outra ocasião onde o stress oxidativo aumenta, dado que é a vitamina com maior capacidade antioxidante presente na alimentação (sendo que outros fitoquímicos na fruta e legumes até têm uma capacidade antioxidante maior do que vitamina C). Em atletas existem evidências contraditórias de que a vitamina C pode ter um papel positivo ou neutro na prevenção de infecções do trato respiratório superior sobretudo em provas de muito longa duração onde este exercício intenso e prolongado provoca uma broncoconstrição por lesão das vias áereas (e sobretudo quando praticado a temperaturas mais baixas). Já na população geral este efeito preventivo não parece existir de forma tão evidente, por isso pode fazer pouco sentido suplementar vitamina C de forma profiláctica.

Tal como referido para a vitamina D, a suplementação em vitamina C pode fazer sentido para quem tenha um baixo aporte alimentar da mesma. Apesar das fontes alimentares serem mais diversificadas como a couve-galega, pimento, agrião, couve flor, kiwi, laranja, morango e brócolos, não faltam pessoas totalmente alheadas da alimentação saudável que não ingerem de todo fruta e legumes e têm um aporte insignificante de vitamina C, que não chega nem perto das 75-90mg que constituem a dose diária recomendada. Esta deve aumentar em 35mg/dia para fumadores e estar na ordem das 200 - 250mg/dia em atletas.

Analisar a farmacocinética da vitamina C pode levantar dúvidas quanto à utilidade de aumentar as quantidades da sua ingestão/suplementação de forma crónica. Ingestões até 30-180mg/dia possuem uma absorção de 70 a 90%, que baixam para menos de 50% quando estas quantidades aumentam para 1g/dia, sendo o restante excretado na urina (que pode eventualmente constatar pela cor mais intensa da mesma quando faz esta suplementação). Cruzando estes valores com o facto de que os valores de vitamina C nos neutrófilos, monócitos e linfócitos (onde realmente interessam no que ao sistema imunitário diz respeito) atingem o seu pico com uma ingestão de 100mg (mesmo quando se dão 2500mg por dia), podemos ver que estas megadoses são desnecessárias. Também aqui os idosos são um grupo de risco para o défice desta vitamina e os seus baixos níveis plasmáticos (<17umol/l) são um forte preditor de mortalidade. Ainda assim, da mesma forma que os níveis de vitamina D em idosos podem estar baixos como reflexo dos mecanismos inflamatórios inerentes a grande parte das doenças (e não como a causa), igual situação pode acontecer no caso da vitamina C, sendo por vezes invertido este nexo de causalidade.

“Mal também não faz”

Outro dos pontos de contacto entre as duas vitaminas é a filosofia do “mal também não faz”. Começando pelos atletas, onde já vimos que a vitamina C até podia ser ingerida de forma mais elevada, um artigo de revisão verificou que suplementar acima de 1g/dia, diminuiu a performance em 8 dos 12 estudos analisados (em 4 destes de forma estatisticamente significativa). Nos outros 4 estudos que verificaram melhoria na performance, em 3 deles a suplementação foi feita no máximo durante 1 semana, ou seja de forma aguda e não crónica. A conclusão é óbvia: mesmo em atletas, doses de 200mg/dia provenientes sobretudo por fruta e hortícolas serão suficientes, pois os famosos “radicais-livres” são igualmente fundamentais para induzir algumas adaptações ao treino e não é necessário andar “encharcado” em antioxidantes.

Em não-atletas, a conversa é semelhante. A ingestão concomitante de 1000mg vitamina C e 400UI vitamina E (outra das recomendações em voga pela corrente “anti-aging”) durante 4 semanas, elimina o efeito benéfico do treino na sensibilidade à insulina e nas nossas próprias enzimas antioxidantes endógenas que são potenciadas com o exercício para além de diminuir até a hipertrofia muscular. Para além disso, a suplementação crónica com 1g de vitamina C pode duplicar o risco de cálculo renal. Ou seja, hoje é mais do que evidente que a suplementação crónica com altas doses de vitamina C para além de não ter efeito benéfico, é prejudicial à saúde. Pode no limite fazer sentido suplementar de forma preventiva em quantidades moderadas (até 200mg/dia), sobretudo quando há défice comprovado na alimentação ou nos níveis leucocitários.

E na perspectiva do tratamento?

Aqui o caso pode mudar de aspecto, pois o stress oxidativo desencadeado por qualquer infecção (mesmo uma “simples” constipação) pode levar a uma diminuição dos níveis de vitamina C nos leucócitos que não é rapidamente recuperável com doses pequenas como 200mg/dia. Estudos em idosos com infecções respiratórias mais graves (bronquites e pneumonia), revelam igualmente que a suplementação com 200mg/dia e até com doses mais elevadas (de 250 a 1600mg/dia), melhorou os sintomas e reduziu o tempo de internamento entre 19 e 36%. O efeito da administração endovenosa de megadoses de vitamina C (1 a 10g/dia) em doentes críticos nos cuidados intensivos também não é de menosprezar. Vários estudos demonstram uma diminuição da mortalidade, do tempo de permanência nos cuidados intensivos e da necessidade de ventilação mecânica com esta estratégia. Mesmo não sendo uma estratégia consensual, até porque nem todos os trabalhos apontam no mesmo sentido, cada dia a menos nos cuidados intensivos ou com ventilação assistida permite salvar mais vidas e poupar recursos com uma suplementação bastante barata. Para além do mais, estas administrações agudas por via endovenosa não parecem ter o mesmo efeito nefasto da suplementação oral crónica no risco de cálculo renal.

Ou seja, com a vitamina C há duas palavras fundamentais que é necessário discernir relativamente às infecções respiratórias: prevenção e tratamento. Constatamos que existem diferenças significativas no efeito, nas quantidades e nas vias de administração da vitamina C consoante estejamos a falar de uma pessoa saudável que apenas quer prevenir o seu risco de infecção ou de um doente “às portas da morte” nos cuidados intensivos. Até porque nestes últimos casos, existe um “incêndio” de grandes dimensões no nosso organismo que é necessário apagar e a vitamina C em grandes quantidades pode dar uma ajuda.

Quando o meu “jardim” está saudável e eu o “rego” da mesma forma como se existisse um incêndio, o mais certo é que o mate na mesma, mas por afogamento. O que tem acontecido nestas últimas semanas, é uma corrente da medicina mais alternativa/integrativa/”anti-aging” suportar-se nestes resultados da vitamina C com o doente crítico (1-1,5g vitamina C de 6 em 6 horas ou 3 a 5 vezes por dia) e recomendá-las à população como estratégia preventiva para reforço do sistema imunitário. Seguindo o mesmo raciocínio de adoptar protocolos de tratamento de patologias como estratégias de prevenção, poderíamos então recomendar quimioterapia para prevenir o cancro ou administrar insulina para prevenir diabetes. Estes exemplos parecem disparatados face aos efeitos secundários que a quimioterapia ou a insulina possuem em relação à vitamina C, mas o racional é o mesmo.

Esta pandemia tem-nos permitido conhecer melhor muitos médicos que estão na 1ª linha de combate a estas e outras doenças e lidam há muitos anos com doentes críticos em ambiente hospitalar adverso e não com pacientes saudáveis e muitíssimo motivados para a sua alimentação e estilo de vida, no conforto da sua clínica privada. E uma das suas maiores características é a serenidade e ponderação do seu discurso. No momento actual apetece citar um deles, o Dr. Roberto Roncon quando refere: “Eu tenho sempre medo dos médicos que têm muitas certezas, gosto mais daqueles que têm muitas dúvidas, são normalmente aqueles que vêem muitos doentes”. Por isso, um conselho a todos os leitores fora da área da saúde que tenham mais dificuldade em distinguir o trigo do joio, é começar por detectar (e fugir) das “certezas absolutas” e recomendações “milagrosas” de alguns egos insuflados na área da medicina e da nutrição. Este é um bom primeiro passo para se perceber se estamos perante alguém que, mais do que ajudar, se quer vender e alimentar o culto da sua personalidade, mesmo durante uma crise de saúde nunca vivida por esta geração.