Abril e 200 anos de constitucionalismo…
A democracia é uma causa longa, frágil, imperfeita e nunca acabada, que nos exige atenção e cuidado. Duzentos anos são estímulo e responsabilidade.
À memória de Júlio Miranda Calha e de todos os Constituintes que nos deixaram.
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À memória de Júlio Miranda Calha e de todos os Constituintes que nos deixaram.
Ao celebrarmos a Revolução democrática de 25 de abril de 1974, não tratamos de um acontecimento histórico, mas de uma realidade presente, que ou se renova permanentemente ou perde sentido, porque deixa de ser uma realidade viva, passando a algo que se mistura com o que vem da noite dos tempos. E devemos lembrar a Constituição de 1976, nascida do movimento emancipador, concretizado num compromisso apto a atualizar-se no tempo. E o certo é devemos lembrar que este ano estamos a celebrar duzentos anos do nosso constitucionalismo.
Desde a Revolução do Porto de 24 de agosto de 1820 que se iniciou a institucionalização da soberania popular, assente na liberdade individual, na igualdade perante a lei, na legitimidade do voto e do exercício e na salvaguarda do valor da justiça. Eis por que devemos ter presente a longa linha de continuidade, com vicissitudes e dificuldades, que marca a democracia. Desde a tradição das Cortes, com destaque para as de Leiria em 1254, nas quais primeiro o povo esteve representado, até à afirmação do municipalismo, vemos na história portuguesa um caminho de apego à independência e à liberdade que culmina no Estado de Direito democrático de hoje e na responsabilidade cívica que nos leva a manter viva a herança democrática. A Constituição da República de 1976 corresponde a um amplo compromisso que deve continuar a renovar-se e a aprofundar-se, na sequência das revisões constitucionais de 1982 e 1989, mas também no desenvolvimento da opção europeia.
A Constituição material portuguesa, ou seja, a Lei Fundamental que se projeta na vida das instituições e na sua força mediadora, que procura garantir a representação e a participação cívica de todos, bem como a ideia de “democracia deliberativa”, deve ser encarada como um corpo vivo, dinâmico, sem a tentação de ceder à tentação conformista do imediatismo. Há uns anos houve quem defendesse a inclusão na Constituição do limite do défice orçamental. Não fazia sentido. Outros que o fizeram reconheceram já a inutilidade. A disciplina financeira faz parte da interpretação da Constituição material, e dispomos de meios mais do que suficientes para proibir a indisciplina orçamental e penalizar a corrupção.
No bicentenário do constitucionalismo em Portugal, ao celebrarmos a Lei Fundamental devemos pensar num constitucionalismo moderno: (a) Pela defesa da estabilidade institucional e de uma mediação flexível; (b) Pelo aproveitamento das suas virtualidades (como no caso do regime eleitoral misto previsto, que a lei ordinária ainda não concretizou); (c) Pelo favorecimento de uma cidadania ativa e responsável; (d) Pelo aperfeiçoamento da democracia deliberativa, ligando representação e participação; (e) Pela consagração do desenvolvimento humano sustentável.
Há duzentos anos, em 1820, prevaleceu a ideia de liberdade e autodeterminação, que culminaria na Constituição de 1822. A tentativa de regresso à ordem velha em 1823-24 seria contrariada pela outorga da Carta Constitucional de 1826 por D. Pedro, líder da causa liberal vitoriosa em 1834 no final da guerra civil. Em 1836, a revolução de Setembro trouxe o regresso ao espírito de 1820, que a Constituição de 1838 consagraria, com a defesa firme do herói cidadão da liberdade que foi Alexandre Herculano e o primado da Educação defendido por Passos Manuel. O interregno do “liberalismo mitigado” de Costa Cabral daria lugar à revolução Regeneradora e ao Ato Adicional de 1852, no qual está a sábia síntese entre o espírito de 1822 e 1838 e a memória do Regente D. Pedro. A Carta Constitucional revista foi a nossa Lei Fundamental mais duradoura, em 58 anos ininterruptos, sem contar com as vigências interpoladas. A Constituição Republicana de 1911 deu um contributo importante para a formação da consciência democrática no século XX e até a Constituição de 1933, pelo incumprimento do normativo ligado aos direitos fundamentais, merece estudo, e a sua prática esteve presente, em contraponto, nos trabalhos da Constituinte de 1975-76.
A democracia é uma causa longa, frágil, imperfeita e nunca acabada, que nos exige atenção e cuidado. Duzentos anos são estímulo e responsabilidade.
Coordenador do Bicentenário do Constitucionalismo na Assembleia da República. Administrador-Executivo da Fundação Calouste Gulbenkian
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico