Ainda não terminaram o curso e já estão na linha da frente: os futuros médicos e enfermeiros no combate à covid-19

Futuros médicos e enfermeiros voluntariam-se em hospitais improvisados, linhas de apoio e instituições. Combater a covid-19 tornou-se o primeiro emprego de profissionais de saúde recém-formados em Itália, Reino Unido, Portugal. Eles sempre quiseram estar na linha da frente — só não esperavam avançar tão cedo.

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No mesmo lugar onde há meses assistiu ao concerto dos Ornatos Violeta, Francisco Dias descansa durante um turno no hospital de campanha do Porto. Da plateia convertida em sala de descanso e gabinete médico, o finalista de Medicina tem “uma visão de águia sobre a enfermaria” para doentes com covid-19, montada em poucos dias no Pavilhão Rosa Mota. Em Outubro, milhares de pessoas saíram dali a dizer que o regresso da banda portuense tinha sido “inesquecível”. De volta à plateia, desta vez pronto a actuar, Francisco, de 23 anos, reconsidera: “Daqui a 40 anos posso não me lembrar de nada, mas vou lembrar-me disto de certeza absoluta.”

O finalista da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto é um dos cerca de 50 estudantes das duas escolas de Medicina do Porto voluntários no hospital improvisado que recebe doentes assintomáticos ou com sintomas ligeiros que não tenham condições para recuperar em casa. “Um estudante do 6.º ano que já tenha feito o estágio em Medicina está pronto para este trabalho”, considera o jovem, que faz três turnos de oito horas por semana. “Em princípio, nunca seremos nós a tomar uma decisão. O nosso trabalho é avaliar o doente, ver os sinais vitais, perceber se o estado do doente está ou não a agravar-se e discutir a nossa avaliação com alguém mais sénior. A novidade é aguentar três horas com o fato.”

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Paulo Pimenta

Não é só o desconforto de usar um equipamento de protecção individual dos pés à cabeça. “A parte do tacto pessoal, de que gostava bastante, perdeu-se. Quando fazemos internamento, temos os nossos doentes e vemos-lhes a cara, eles vêem-nos a cara e desenvolvemos uma relação, porque os vemos todos os dias. Estamos lá quando eles entram e quando saem. Neste caso nós entramos com os fatos, onde escrevemos com uma caneta de acetato o nosso nome. Eu estava muito habituado a que eles me reconhecessem e a dar-lhes um beijinho quando se fossem embora. Com o fato ficamos irreconhecíveis.”

De resto, “o fato é uma coisa nova e os cuidados extras também, mas a entreajuda que se vê agora nem se compara, constata. Estamos todos juntos a fazer o mesmo trabalho e, como somos valorizados, o contributo que damos também é maior.” A partir desta semana, 20 estudantes de Medicina do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) começaram também a prestar apoio num hotel na Maia que acolhe utentes de lares com covid-19.

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Em Faro, mais de 150 futuros médicos da Universidade do Algarve coordenam e dão voz a um novo call center da linha SNS24. Finalistas de Enfermagem da Universidade do Minho ajudam a destruir mitos por telefone, com a supervisão de professores, para aliviar outras linhas de apoio que, em Março, não conseguiam dar resposta a tantas dúvidas. E, na Covilhã, os finalistas de Medicina asseguram a linha gratuita Covid-19 - Esclarecimento e Informação.

“Bastava olhar para os outros países e perceber o que ia acontecer aqui. Quando começámos a ver Itália, já estávamos a prever a necessidade de recrutamento de finalistas”, lembra-se Francisco Dias. Temiam a mesma urgência de Espanha, “onde os estudantes do 6.º ano constituem uma força de trabalho completamente insubstituível: “Nós cá, embora sejamos precisos, não é com a mesma urgência que em Espanha ou Itália.”

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Em Março, depois das aulas e estágios serem suspensos e após “inúmeras interpelações de estudantes”, a Associação Nacional de Estudantes de Medicina informou que os estudantes de Medicina estavam “absolutamente disponíveis para auxiliar, activamente e no terreno, as autoridades de Portugal neste momento crítico de emergência nacional”. Ao mesmo tempo, Rúben Jacinto estava a juntar 150 colegas da Universidade do Algarve para estrearem um call center em Faro. “Foi tudo muito rápido”: dois dias depois de saberem “que as escolas de Medicina iriam encerrar como exemplo para a sociedade”, a directora do curso ligou ao responsável da turma do 5.º ano a perguntar se os colegas “estariam disponíveis para darem apoio na linha do SNS24”.

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Rúben Jacinto, estudante do 5.º ano do mestrado integrado em Medicina, em Faro. DR

“Montaram computadores e telefones à velocidade da luz, tivemos uma formação e dias depois estávamos a trabalhar”, conta. O elevado número de chamadas, que entretanto dizem parecer estar a diminuir, levou a que aos estudantes do 5.º e 6.º anos se juntassem os dos dois anos anteriores, titulares de uma licenciatura prévia na área da Saúde ou das Ciências. “Podíamos aproveitar para descansar e ter férias, porque o curso é muito intenso. Mas quase todos os colegas disseram que queriam ajudar, em regime de voluntariado, no início.” Durante o tempo passado ao telefone, aperceberam-se “das necessidades reais das pessoas”. Perguntam-lhes “se deviam usar máscaras e de que tipo”, se lavar as mãos era preferível a cobri-las com luvas e onde poderiam encontrar gel desinfectante. “Conseguimos alguns apoios de destilarias locais que nos ofereceram álcool e estamos a ir de concelho a concelho do Algarve a distribuí-lo e a ensinar a lavar as mãos, a ensinar a etiqueta respiratória e a doar alimentos às pessoas mais afectadas pela crise do covid-19.”

São 15 estudantes e só começaram há uma semana. Entre a burocracia necessária para conseguir apoios, a escassez de materiais e o “cansaço que já começam a acusar”, não conseguem ajudar toda a gente. Num primeiro dia em Lagos falaram com 160 famílias. “Conseguimos tirar muitas dúvidas. Há muitos mitos que andam por aí. E estamos a ver a pessoa cara a cara, conseguimos ver o sorriso, conseguimos ver a tristeza das pessoas.” No início desta semana, bateram a portas na serra de Albufeira. “Os idosos que lá vivem isolados sentem-se muito sozinhos, agora ainda mais. Já nos apercebemos que ser um ouvido e um conselheiro começa a ser desgastante emocionalmente.”

Primeiro emprego: combater a pandemia

Entrar no primeiro escritório a meio de uma pandemia “é, no mínimo, estranho”. Foi isto que pensou Maria João Magalhães, licenciada em Enfermagem em Fevereiro, enquanto entrava nervosamente no elevador (e ponderava antes enfrentar as escadas). Um mês depois de sair da faculdade, o primeiro emprego da jovem de 23 anos foi reforçar o grupo de trabalho da linha SNS24 (808 24 24 24) que atende chamadas relacionadas com o novo coronavírus. “Fui literalmente contratada para o meu primeiro emprego por causa do coronavírus”, ironiza a enfermeira, que contrariamente ao que lhe foi dito tem tido alguns minutos para pousar o telefone entre chamadas.

Antes, teve uma experiência num lar em Santa Maria da Feira que durou um dia. Sem equipamentos de protecção individual suficientes e com dezenas de utentes à sua responsabilidade, não aceitou estas e outras propostas com “valores muito acima da média” para uma recém-licenciada. “Queria começar pelas coisas mais básicas, mas são essas que neste momento parecem as mais perigosas, porque não há meios. É um passo grande começar a trabalhar, é uma responsabilidade muito maior do que os estágios e fazer esta adaptação sob a pressão de estar em pandemia foi assustador”, diz. “Eu sei que ser enfermeiro e atender chamadas parece estranho, as pessoas esperam um contacto mais físico, mas é uma linha que te prepara muito para a vida real, porque aprendes a pôr as questões certas para perceber a situação da pessoa.”

Mariana de Lemos, de 24 anos, começou em 2020 o ano comum — que depressa saiu fora do caminho habitual. A médica interna de formação geral estava a passar pela especialidade de cirurgia geral quando o volume de trabalho nos blocos operatórios começou a diminuir. Ao mesmo tempo, o número de infecções pelo SARS-CoV-2 aumentava e os médicos internos, como ela, eram chamados a ajudar nos serviços de urgência direccionados para a covid-19. Agora, em intervalos de duas semanas, trabalha na tenda de triagem montada para pessoas com suspeitas de infecção, no Hospital de Gaia. Nos 15 dias de pausa ajuda num centro de saúde, onde trata de receitas de medicação crónica e telefona a quem tinha consultas que podem ser adiadas.

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Paulo Pimenta

“Estamos a ter um papel mais activo do que esperávamos. Temos uma independência a que não estávamos habituados, sendo este o nosso primeiro ano e na tenda temos mais trabalho prático”, descreve. “Muitos médicos mais velhos nunca passaram por uma pandemia como esta. Aconteceu no nosso primeiro ano de trabalho uma situação que talvez aconteça uma vez na vida.”

Uma pandemia abana as “principais preocupações” de um ano em que, geralmente, os internos de formação geral procuram conhecer o dia-a-dia das especialidades, ir a congressos e falar com especialistas mais velhos para perceber em que área irão investir mais quatro a seis anos de formação. “Decidir o que mais gostamos costuma ser a principal preocupação deste ano. Este assunto está um bocado perdido, neste momento. Para nós isso não está a ser uma prioridade, até porque o dia-a-dia não está a ser o que seria numa situação normal.”

Um travão na aparente normalidade pôs entre parênteses os planos a curto e médio prazo de milhões de pessoas em todo o mundo. Quando falamos do comboio de longo curso que é a formação de um médico, normalmente com paragens bem marcadas, “o impacto sente-se, mas não é crítico”, lembra Francisco Dias. Nos próximos meses, o futuro médico fará a apresentação da tese e o estudo para a prova final “vai ter de se começar a intensificar”, o que, diz, pode “reduzir a disponibilidade” dos estudantes do 6.º ano para ajudar.

Em Itália, dez mil estudantes de Medicina foram dispensados do exame final. Em vez da prova, o ministro do Ensino Superior, Gaetano Manfredi, anunciou em Março que os finalistas poderiam começar a trabalhar nove meses antes do esperado para conseguir injectar no sistema de saúde milhares de médicos e “aliviar a escassez de recursos” que o país enfrenta. Os recém-graduados serão enviados para clínicas e lares, libertando os colegas com mais experiência que poderão ajudar em hospitais em ruptura, noticia a Reuters.

Há um mês sem aulas, estágios, relatórios e exames, Rúben Jacinto começa a sentir-se “desnorteado”. “Estávamos habituados a estudar três a cinco horas por dia. Vamos ser médicos e precisamos de saber o máximo que conseguirmos, num tempo muito reduzido. Não estou a conseguir controlar a parte do estudo, mas não é para isto que estudamos? É muito bom ver que nesta pandemia conseguimos olhar pelo outro em vez de por nós próprios.”