Confinamento: o terreno do cultivo dos cravos de agora!
Como crianças com bichos-carpinteiros, começa cá dentro o tempo do frenesim. Queremos soltar amarras e voltar a deambular por aí, ao sabor do Sol da Primavera.
Esta semana comemoramos mais um aniversário da Revolução de Abril e, como outras datas já assinaladas, teremos de o fazer de forma atípica, invulgar.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Esta semana comemoramos mais um aniversário da Revolução de Abril e, como outras datas já assinaladas, teremos de o fazer de forma atípica, invulgar.
No aqui e agora do tempo da covid-19, sabemos que é de suprema importância que contenhamos a vontade e o impulso do fazer, ou seja, que mantenhamos controladas as nossas saídas de casa, travando de forma consciente e intencional a possibilidade de fazermos o que queremos, quando queremos, da forma que nos apetece.
A tentação de quebrar as regras é grande, a dificuldade de mantermos intacto dentro de nós o sentimento de sermos livres é desafiante. O cansaço acumulado das últimas semanas abate-se. O sentimento de revolta activa-se fazendo frente às correntes do confinamento que nos prendem os movimentos, dando-nos a sensação de que estamos, de novo, numa espécie de ditadura.
Psicologicamente falando, poder-se-á dizer que a emoção do medo e a angústia da incerteza que comandaram as primeiras semanas, e nos permitiram alterar/adequar comportamentos com vista à adaptação necessária à nova situação, começam agora a dar lugar aos sentimentos de inquietude, de raiva e de frustração pelo não avistar do fim próximo dos sacrifícios.
Como crianças com bichos-carpinteiros, começa cá dentro o tempo do frenesim. Queremos soltar amarras e voltar a deambular por aí, ao sabor do Sol da Primavera, saltando, correndo, passeando e rindo só porque sim. Somos livres!
Sentimo-nos zangados, mais do que ameaçados, e a questionar até que ponto toda esta liberdade condicionada vale a pena, que é o mesmo que dizer: até onde (dentro de nós) a conseguiremos suportar?! Sem qualquer dúvida, é cada vez mais óbvio que este é um tempo cheio de paradoxos. Um tempo que nos propõe, em cada etapa, um novo desafio dificílimo de ultrapassar, não só por ser um tempo novo (desconhecido), mas, acima de tudo, extremado nas contradições em que nos mergulha.
Racionalmente, sabemos dos motivos de tais condições, assim como compreendemos o quanto beneficiam a todos e a cada um, mas, emocional e afectivamente, torna-se hercúlea a tarefa de manter o equilíbrio mental capaz de nos manter saudáveis, com constante qualidade na capacidade de pensar.
Afinal, o que nos distingue das demais espécies animais é isso mesmo — a capacidade que temos de, em consciência, pensar sobre o que experienciamos, dotando-nos, entre outras coisas, da possibilidade de fazer escolhas e tomar decisões.
Como muito da vida em geral, tudo tem, pelo menos, dois lados, ou duas faces como as moedas. Festejemos 46 anos de Abril, questionando/reflectindo sobre o que é ser livre agora. Para que serve ser livre agora? No que assenta, afinal, a liberdade? Diria que, hoje e sempre, liberdade articula-se com dignidade e responsabilidade. Neste tríptico de valores vivenciais, hoje ser livre é escolher não fazer o que nos é habitual, e, mesmo assim, continuar a poder pensar e dizer o que sentimos, sem restrições. É poder dar lugar ao contraditório, porque manter o direito à e na diferença não carece de autorização de fora de cada um de nós, e porque nenhum vírus nos rouba o Abril que já é nosso.
Ser livre agora é permitirmo-nos ser humanos por inteiro, dignos da espécie a que pertencemos, optando por não nos deixarmos reduzir às acções que praticamos como se fôssemos apenas seres que fazem, que reagem, que se pautam e se medem pelo número de vezes que saem à rua, por exemplo. Hoje, não sair à rua por regra é o expoente máximo do que, em responsabilidade plena, diz do quanto somos livres. É sensato, é maduro e é profundamente respeitoso da liberdade alheia. Afinal, a nossa liberdade termina quando começa a liberdade dos outros. Defendemo-la nestes limites porque nos sentimos dignificados por ela.
Ser livre, hoje, é também darmo-nos o direito individual e colectivo de experimentar o sofrimento associado às condições extraordinárias em que vivemos. Aprofundar o significado da revolta que sentimos — para renovar dentro de nós o seu valor saudável! —, experienciar, sem vergonha, culpa ou sentimentos de fracasso ou fragilidade sem sentido, o cansaço que nos parece invencível é humano tanto quanto expressão do como somos capazes de viver tudo isto como protagonistas e herdeiros da Revolução dos Cravos!
Fomos capazes de reivindicar uma nova condição há 46 anos em paz, como poucos povos conseguiram. Continuemos, pois, a exercer-nos como livres, dizendo basta do lado de dentro de cada um, todas as vezes que a tentação de nos apequenarmos falar mais alto! Façamos Abril do lado de dentro, mantendo o confinamento como o terreno de cultivo dos cravos de agora.