Que a arte permaneça, e o mundo não pereça
Este texto nasce da convicção de que a Cultura tem de ser, nesta crise, uma opção. Além da sua dimensão económica, ela é essencial à realização humana e à democracia.
“Que vivas em tempos interessantes.”
(Frase tradicionalmente atribuída a uma maldição chinesa.)
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“Que vivas em tempos interessantes.”
(Frase tradicionalmente atribuída a uma maldição chinesa.)
Com a crise da pandemia enfrentamos ameaças de tonalidades apocalípticas. Destruidoras e avassaladoras, por um lado; renovadoras e transformadoras, por outro.
É este double bind que torna estes tempos “interessantes”. É nos momentos críticos que se tomam opções. Sobre quem queremos ser e onde queremos estar.
Este texto nasce da convicção de que a Cultura tem de ser, nesta crise, uma opção. Além da sua dimensão económica, ela é essencial à realização humana e à democracia. É por essa razão que, em “tempos interessantes”, o devemos afirmar, não apenas por oposição ao veneno dos populismos, mas também ao discurso de areias movediças que o protela para um “momento oportuno” ou o confina ao estreito modelo de “ideias giras”. Sem pensamento nem estratégia.
Nesta discussão, devemos pôr de parte dois argumentos.
O primeiro exprime-se demagogicamente na ideia de que não pode haver Cultura (ou investimento e prioridades para o setor) enquanto houver pobreza no mundo. O mesmo será dizer: enquanto houver défices orçamentais e “outras prioridades”.
O segundo, igualmente perverso e totalitário, tem na fórmula latina “fiat ars et pereat mundus” [“que a arte permaneça, ainda que mundo pereça”] a sua mais eloquente expressão.
Mais do que uma abordagem paternalista e assistencialista, o que o setor e os seus atores esperam e acalentam é de oportunidades de trabalho, investimentos na reinvenção do seu lugar e compromissos claros.
Algumas possibilidades de transformação estão a ser ignoradas neste “pousio”. Especialmente na digitalização, onde a falta de investimento é estrutural – da criação à difusão, do património à comunicação. Parte dos financiamentos comprometidos não precisam sequer de ser “reagendados” (a agenda não é a medida de todas as coisas). Poderiam orientar-se para o incremento do território digital da Cultura e do Património. O mesmo se poderá dizer dos salvíficos fundos comunitários.
A uma escala municipal – em Viseu – demos um passo nesse sentido, ao propor que promotores culturais, afetados pela crise, possam converter 25% dos financiamentos aprovados em “conteúdos digitais” profissionais. Olhando apenas para 2020 e a esta pequena escala, poderemos estar a falar de um investimento de 200 mil euros.
Outro exemplo recente desta transformação é a aposta na digitalização do património e na sua disponibilização pública, empreendida no Polo Arqueológico de Viseu e no Museu de História da Cidade. Mas, de um modo geral, a experiência digital do património e da museologia no país está ainda na sua pré-história…
Outra questão inadiável tem que ver com a incerteza morna que, em Portugal, deixa em suspenso – sob o abismo – dezenas de festivais de verão e milhares de profissionais, de norte a sul. Talvez essa indefinição possa ser “gerível” em gabinetes de Governo, mas é social e economicamente mortífera. Não apenas para a “classe”, mas para os próprios promotores. Algum planeamento e diálogo tornam-se urgentes e indispensáveis.
Finalmente, talvez seja o momento de se conferir conteúdo concreto à tão gasta e mal-empregue expressão “descentralização cultural”. Não me refiro à descentralização que vai de Lisboa ao Porto, mas aquela que conhece cidades médias, redes de aldeias, territórios do Interior. O Turismo tem dado sinais que interpreta essa visão.
Mais do que nunca, precisamos hoje de uma Cultura esperançada e que se coloque do lado da esperança.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico