“Quando a merda acerta na ventoinha”

Testemunho de André Henriques, músico (Linda Martini e solo). “A nossa maravilhosa humanidade, o nosso altruísmo, a nossa vontade de ajudar a vizinha velhinha, a nossa paciência para os putos, a reciclagem do lixo. Tudo esmoreceu tão rápido.”

Perdoem-me o título rude. É uma tradução livre da expressão “when the shit hits the fan”, cuja origem remonta ao final dos anos 1930 e à II Guerra Mundial. Fiquei a saber que existem inúmeras variantes menos explícitas, como ovos, sopa ou tartes arremessadas contra a ventoinha. Contudo, decerto concordarão comigo, nada mais adequado ao momento do que uma valente pazada de excrementos contra a dita.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Perdoem-me o título rude. É uma tradução livre da expressão “when the shit hits the fan”, cuja origem remonta ao final dos anos 1930 e à II Guerra Mundial. Fiquei a saber que existem inúmeras variantes menos explícitas, como ovos, sopa ou tartes arremessadas contra a ventoinha. Contudo, decerto concordarão comigo, nada mais adequado ao momento do que uma valente pazada de excrementos contra a dita.

A lua-de-mel durou pouco. Na primeira semana, todos sorríamos e partilhávamos hashtags. Aprendemos a fazer pão em casa, (não sei se foi porque uma conhecida padaria anunciou que estava à rasquinha para pagar ordenados ao mesmo tempo que o “espírito de equipa” começou a desvalorizar como moeda de troca nos mercados europeus), frequentámos pelo menos uma aula de ioga online, assistimos a uns lives com se de concertos se tratasse, demos raspanetes aos nossos pais e avós, ensinámo-los a usar o Skype, o Zoom e a fazer compras online. Passámos tempo valioso com os nossos filhos e acreditámos piamente que só precisavam de mimo, atenção, pintar um arco-íris em lençóis velhos e ajudar na cozinha para serem felizes durante a quarentena. À noite batemos palmas aos bravos heróis que lutam na linha da frente com máscaras improvisadas, quando apenas há um mês os mesmos heróis eram vítimas de valentes tabefes nas urgências dos hospitais.

Nos entretantos, foram-nos vendendo essa ideia de que ficar fechado em casa é uma oportunidade para reflectirmos, para pensarmos mais em nós, nos outros, na natureza e no que um gajo leva desta vida. Afinal, ficar em casa não era dramático, pelo menos para quem de facto tem uma, não sofre com violência doméstica e ainda tem uns trocos para pôr comida na mesa. Ainda deu para conhecer um bonito animal selvagem chamado pangolim, que não tem culpa nenhuma disto. 

Pela segunda semana, a coisa mudou ligeiramente de figura. As moratórias, os layoffs, os apoios da Segurança Social, os recibos verdes, as contas no Excel, os decretos-leis que nunca falam de todos, as escolas e as mensalidades, as curvas, os infectados, as zaragatoas, os óbitos, as máscaras, os ventiladores, os pneumologistas, os moralistas, a culpa dos chineses, a culpa dos gajos que se querem pisgar para o Algarve, a culpa da malta que não deixa papel higiénico para mais ninguém, a culpa do Governo actual, a culpa dos governos anteriores, o desinvestimento na saúde pública, os populistas, os virologistas, os especialistas. 

A nossa maravilhosa humanidade, o nosso altruísmo, a nossa vontade de ajudar a vizinha velhinha, a nossa paciência para os putos, a reciclagem do lixo. Tudo esmoreceu tão rápido. Por breves instantes havia um cheiro a esperança no ar. Agora deambulamos de pijama em frente da televisão na esperança de ouvir “Arrebenta a bolha” ou “um, dois, três, farmacêutica salva todos”!

E eu, como estou no meio disto? Não me posso queixar. Tenho uma casa, uma varanda, uma família que eu adoro e me tolera. Torrei a paciência da minha esposa durante anos por ter comprado uma passadeira de corrida que ninguém utilizava e agora vou lá todos os dias. Chia muito, o que faz com que a vizinha de baixo pense que estamos epicamente a tentar ir ao terceiro filho.

Deixei de poder exercer a minha actividade profissional principal, mas mantenho-me ocupado. Sem nos apercebermos, eu e a minha esposa abrimos um centro de tempos livres com snack-bar que serve ininterruptamente os nossos dois filhos. Abre cedo e encerra tarde, pelo que a jornada laboral em regime de teletrabalho tende a arrastar-se até de madrugada. 

O que eu queria? Apanhar um arzinho. Estava capaz de ir para a rua com uma guitarra e um chapéu e sentar-me à entrada do Metro. E se algum polícia, no seu estado de direito e de emergência, me interpelasse questionando a natureza dos meus actos, dir-lhe-ia: “Estou a trabalhar, senhor agente! Sabia que sorrir é um bem de primeira necessidade? Pode pagar por MB Way.”