Covid-19: Especialista em vacinas do Governo dos EUA diz que foi afastado por se opor à hidroxicloroquina

Afastado da linha da frente do combate à pandemia nos Estados Unidos, o cientista norte-americano Rick Bright acusa a Administração Trump de “clientelismo” ao promover o uso generalizado de um medicamento contra a malária.

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O Presidente dos Estados Unidos tem defendido o uso da hidroxicloroquina no combate à covid-19 JONATHAN ERNST/Reuters

O cientista norte-americano Rick Bright, director da agência do Governo dos Estados Unidos que desenvolve vacinas e outras respostas a pandemias e ameaças de bioterrorismo, foi afastado do cargo esta semana e transferido para uma posição mais discreta nos Institutos Nacionais de Saúde. Na hora da saída, Bright disse que foi punido por se opor ao uso de um medicamento contra a malária no combate à covid-19 e acusou a Administração Trump de “clientelismo” na procura por um tratamento para a doença provocada pelo coronavírus.

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O cientista norte-americano Rick Bright, director da agência do Governo dos Estados Unidos que desenvolve vacinas e outras respostas a pandemias e ameaças de bioterrorismo, foi afastado do cargo esta semana e transferido para uma posição mais discreta nos Institutos Nacionais de Saúde. Na hora da saída, Bright disse que foi punido por se opor ao uso de um medicamento contra a malária no combate à covid-19 e acusou a Administração Trump de “clientelismo” na procura por um tratamento para a doença provocada pelo coronavírus.

Como director da Autoridade de Investigação e Desenvolvimento em Biomedicina (BARDA), uma agência do Departamento de Saúde norte-americano, o imunologista Rick Bright fazia a ponte entre o Governo dos Estados Unidos e o sector privado na tarefa de manter o país preparado para várias ameaças, desde surtos violentos de gripe a ataques biológicos, químicos e nucleares, passando por “doenças emergentes” – uma classificação que pôs a agência na linha da frente do combate à covid-19.

De acordo com os jornais norte-americanos, as divergências entre Bright e a liderança do Departamento de Saúde são antigas e ganharam uma nova dimensão com a crise do coronavírus.

Para os críticos, o responsável reclamava uma autoridade, que não tinha, para tomar decisões sobre o financiamento de investigações, e foi lento a reagir à pandemia, dando prioridade à procura de tratamentos que envolviam estudos a longo prazo; para os defensores, a sua formação como cientista levava-o a ter cautelas em relação a propostas mais imediatas e pouco testadas, como o uso generalizado de hidroxicloroquina – usados contra a malária, a artrite reumatóide e outras doenças auto-imunes – em doentes com covid-19.

“Estou convencido de que a minha transferência foi uma resposta à minha insistência para que o Governo investisse os milhares de milhões de dólares aprovados pelo Congresso para o combate à pandemia de covid-19 em soluções seguras e aprovadas cientificamente, e não em medicamentos, vacinas e outras tecnologias sem mérito científico”, disse Rick Bright num comunicado divulgado na terça-feira.

“Decidi denunciar esta situação porque o combate a este vírus mortífero deve ser guiado pela ciência e não por questões políticas ou clientelismo”, disse o cientista.

Falta de estudos

Os supostos benefícios da hidroxicloroquina no combate à covid-19 foram promovidos pelo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a partir de 19 de Março, numa altura em que o número de mortes no país começava a aumentar de forma significativa.

Mas o seu sucesso contra o novo coronavírus na generalidade dos doentes ainda não foi comprovado. Para além da falta de estudos abrangentes e em número suficiente para se determinar a eficácia da hidroxicloroquina em doentes com covid-19 – e da existência de pequenos estudos que apontam para a sua contra-indicação –, o aumento da procura pelo medicamento nos Estados Unidos e noutros países pôs em risco as reservas destinadas ao tratamento de outras doenças, como a lúpus.

No início de Abril, a Aliança Global de Reumatologia, uma federação internacional centrada na resposta dos reumatologistas à covid-19, alertou para os “problemas graves na validação científica” dos estudos que levaram o Presidente norte-americano e outros líderes políticos a recomendarem o uso generalizado do medicamento, e avisou que a falta no mercado “representa um risco para os pacientes com doenças reumáticas que dependem da hidroxicloroquina para a sua sobrevivência”.

Rick Bright anunciou que vai pedir uma investigação interna aos motivos que levaram ao seu afastamento e disse que vai também proteger as suas denúncias recorrendo ao estatuto de “whistleblower”.

“Resisti a esforços para o financiamento de medicamentos potencialmente perigosos, promovidos por quem tem ligações políticas”, disse o cientista. “Em particular, e em oposição a directivas enganadoras, limitei o uso generalizado de cloroquina e hidroxicloroquina promovido pela Administração como uma panaceia, mas aos quais falta validação científica.”

No mesmo comunicado, Rick Bright diz que tentou restringir o uso do medicamento apenas em doentes de covid-19 já hospitalizados e sob supervisão médica. E acusa a Administração Trump de favorecer empresas que promovem o uso mais abrangente da hidroxicloroquina antes de o seu benefício ser comprovado pela ciência.

“Apelo ao inspector-geral do Departamento de Saúde que investigue a forma como esta Administração tem politizado o trabalho da BARDA e me tem pressionado, a mim e a outros cientistas cautelosos, a financiar empresas com ligações políticas e respostas sem validação científica.”

Questionado, na conferência de imprensa de terça-feira na Casa Branca, sobre o comunicado de Rick Bright, o Presidente Trump disse que nunca ouviu falar do cientista.

“O tipo diz que foi afastado de um cargo. Talvez sim, talvez não. Teríamos de ouvir a outra parte”, disse Trump.

Aprovação rápida

Na semana passada, a agência Reuters noticiou que a autoridade do medicamento nos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), pode ter abdicado dos seus elevados padrões de exigência para aceitar uma oferta da farmacêutica Bayer de três milhões de comprimidos do medicamento Resochina, à base de fosfato de cloroquina.

Numa série de e-mails a que a agência teve acesso, responsáveis da FDA mostraram-se entusiasmados com a oferta da empresa, anunciada a 19 de Março, no mesmo dia em que o Presidente Trump promoveu, pela primeira vez, as potenciais qualidades da hidroxicloroquina.

Segundo a investigação da Reuters, as fábricas da Bayer que produzem ingredientes e doses de Resochina, na Índia e no Paquistão, “nunca foram registadas nem inspeccionadas pela FDA”. E as autoridades paquistanesas que inspeccionaram a fábrica da farmacêutica em Carachi, em 2015, “detectaram falhas grosseiras no processo de manufactura”.

Num comunicado enviado à Reuters, a Bayer disse que a FDA testou o seu medicamento e que determinou ser “de qualidade apropriada a uma autorização para uso de emergência”.

Num comunicado publicado no dia 19 de Março, a farmacêutica agradeceu ao Presidente Trump por “agir rapidamente para autorizar a doacção” e disse que vai continuar a trabalhar com a Administração Trump “para apoiar os seus esforços na luta contra a covid-19”.

Num comunicado anterior, intitulado “Uma substância activa da Bayer pode ajudar” no combate à covid-19, a empresa refere que a Resochina foi usada na prevenção da malária durante décadas e que a sua produção foi descontinuada no Verão de 2019, porque “vários parasitas da malária desenvolveram resistência” ao medicamento. “Agora, no meio da crise do coronavírus, a empresa intensificou a produção do produto”, lê-se no comunicado.