Guia para acompanhar o conselho onde se discute a resposta europeia ao coronavírus
Líderes europeus tentam chegar a acordo, mas o ponto de partida é apenas o entendimento comum de que é preciso fazer alguma coisa.
Ainda no meio da maior crise económica das últimas oito décadas, mas numa altura em que se começa já a falar da reabertura progressiva das economias, os líderes europeus discutem esta quinta-feira aquilo a que o presidente do Conselho Europeu já deu o nome de Fundo de Recuperação Europeu. Será, sem qualquer dúvida, um debate difícil, com várias propostas em cima da mesa e um resultado final ainda incerto, sendo que a possibilidade de não se atingir qualquer consenso não pode ser colocada de lado.
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Ainda no meio da maior crise económica das últimas oito décadas, mas numa altura em que se começa já a falar da reabertura progressiva das economias, os líderes europeus discutem esta quinta-feira aquilo a que o presidente do Conselho Europeu já deu o nome de Fundo de Recuperação Europeu. Será, sem qualquer dúvida, um debate difícil, com várias propostas em cima da mesa e um resultado final ainda incerto, sendo que a possibilidade de não se atingir qualquer consenso não pode ser colocada de lado.
Porque é que a Europa precisa de um fundo de recuperação?
A Europa, tal como o resto do mundo, está a passar pela maior contracção da sua economia desde a Grande Depressão, nos anos 30 do século passado. De acordo com o FMI, mesmo colocando de lado cenários ainda mais negativos, a economia da zona euro poderá cair 7,5% este ano, uma quebra bastante mais forte do que a de 4,5% registada em 2009 durante a crise financeira internacional.
E, neste cenário, uma coisa para já é certa: os Estados estão a ser chamados, como nunca antes na história, a tentar limitar os danos imediatos e a evitar que fiquem cicatrizes para o futuro, que impeçam uma recuperação económica forte. Como todos os países foram afectados pela crise, uma resposta comum dos Estados-membros poucas vezes fez tanto sentido. E uma ausência de acção comum poderia conduzir a um fortalecimento dos argumentos das correntes anti-europeístas em diversos países.
Os países não conseguem tratar do problema sozinhos?
Em larga medida, é isso que têm tentado fazer nesta fase inicial. O problema, no caso europeu e em particular na zona euro, é que, como ficou demonstrado durante a crise anterior, se um país começar a apresentar sinais de uma situação económica e orçamental mais débil, os mercados podem começar a exigir taxas de juro cada vez mais altas para lhe emprestarem dinheiro, podendo mesmo colocar em causa a capacidade de a economia se continuar a financiar.
A dimensão desta crise faz com que seja inevitável que vários países, caso sejam colocados perante este desafio sozinhos, registem uma deterioração muito acentuada dos seus indicadores orçamentais, para níveis nunca vistos. De acordo com o FMI, a dívida pública italiana pode disparar para um valor acima de 150% do PIB este ano, a portuguesa pode superar os 130% outra vez.
Sem uma ajuda comum europeia, os governos desses países podem ser colocados perante a escolha de gastar mais arriscando serem pressionados pelos mercados, ou gastarem menos arriscando uma contracção económica maior e mais prolongada, com consequência negativas também a nível orçamental. Em ambos os casos, o resultado final pode bem ser um pedido de resgate.
Coincidência ou não, neste momento, são os países do Norte, com uma situação orçamental mais folgada, que estão a apresentar medidas anti-crise mais ambiciosas.
A ajuda do BCE não chega?
O BCE, como na anterior crise, foi rápido a reagir à crise. Primeiro reforçou o programa de compra de dívida pública em 200 mil milhões de euros e, depois, a 18 de Março, quando as taxas de juro de países como a Itália e a Grécia começaram a disparar, anunciou um pacote especial de compra de dívida pública no valor de 750 mil milhões de euros, que durará pelo menos até ao final do ano, e sem limites quanto à quantidade de dívida que pode deter de cada país. É uma ajuda significativa porque, ao comprar títulos de dívida emitidos pelos Estados da zona euro, aumenta a procura existente no mercado e contribui para que as taxas de juro desçam, ou pelo menos não subam tanto. Quando anunciou as novas compras de 750 mil milhões, as taxas de juro dos países periféricos começaram imediatamente a descer. E se as taxas estiverem baixas, é possível aos Estados-membros obterem o financiamento de que precisam.
No entanto, a verdade é que, mesmo com o BCE a realizar compras, as taxas de juro têm vindo progressivamente a subir outra vez, encontrando-se já próximo dos níveis registados antes da intervenção do banco central. Isto mostra que existem dúvidas sobre a capacidade de o BCE, com divisões internas muito significativas, manter uma intervenção prolongada e de grande dimensão que contenha todas as ameaças de crise nos mercados.
E as medidas do Eurogrupo?
O pacote de cerca de meio bilião de euros aprovado pelos ministros das Finanças da zona euro é, tem reconhecido o próprio presidente do Eurogrupo, apenas “o primeiro passo”. A linha de crédito do Mecanismo Europeu de Estabilidade permite o acesso a crédito a taxas de juro muito baixas e tem a vantagem, em relação aos programas de resgate da anterior crise, de não vir acompanhada de uma lista de condições, mas, para além de não resolver o problema do endividamento, tem a desvantagem de apenas poder ajudar um país a financiar-se num montante equivalente a 2% do PIB de cada país. No caso de Portugal, isto significa um valor próximo de 4000 milhões de euros. Quando perdeu acesso ao mercado em 2011, Portugal pediu emprestado aos parceiros europeus e ao FMI um valor incomparavelmente mais alto: 78 mil milhões de euros, o que revela que não será esta linha de crédito a fazer a diferença na eventualidade de uma crise da dívida grave.
O que dificulta o entendimento dos países europeus?
Parece existir um largo consenso em relação à necessidade de uma resposta comum à crise, mas no que diz respeito à forma que essa resposta terá de assumir um acordo está ainda distante, com a já antiga divisão norte-sul (ou divisão centro-periferia) que marcou a anterior crise da zona euro a vir ao de cima. De um lado, os países do sul (ou da periferia), onde se inclui Portugal, Itália e Espanha, querem que os países da zona euro partilhem os riscos e custos da resposta à crise, dizendo que só isso permitirá que os países mais afectados e com uma posição de partida mais frágil acedam a financiamento a taxas de juro favoráveis sem agravar demasiado os seus níveis de endividamento. Já os países do norte (ou do centro), onde se incluem a Alemanha e a Holanda, querem evitar uma situação em que são eles a assumir, com os orçamentos, uma parte substancial do esforço que tem de ser feito a sul. E partindo deste desentendimento em relação à partilha de riscos, todos os detalhes do fundo de recuperação são motivo de discussão?
Onde se vai buscar o dinheiro?
O orçamento da UE e o recém instrumento orçamental da zona euro têm uma dimensão tão reduzida que qualquer ambição de montar um fundo com pelo menos um bilião de euros (Centeno fala de um número “com doze zeros”) exige que se vá buscar dinheiro novo a algum lado. E aqui parece ser inevitável que seja realizada uma emissão de dívida, seja por um fundo criado para o efeito, seja pela Comissão Europeia. Em ambos os casos, os Estados-membros teriam de dar garantias de forma a assegurar que a emissão obteria uma classificação AAA por parte das agências de rating.
Quem recebe o dinheiro e como?
Bem mais difícil é chegar a acordo sobre como e quem é que recebe o dinheiro. Os países do sul defendem que o dinheiro deve ser entregue aos países através de subvenções, a fundo perdido, ao estilo do que acontece com os tradicionais fundos europeus. Só assim, dizem, não se assistirá a uma subida grave da dívida pública dos países mais afectados.
A norte, contudo, um fortalecimento das transferências dentro da união não é aceitável e apenas se coloca a hipótese de ceder esse dinheiro sob a forma de empréstimos a taxas de juro baixas, que teriam no entanto a prazo de ser devolvidos.
Também não há entendimento sobre qual o critério utilizado para distribuir o fundo. Os países com mais dificuldades (mais custos de saúde, mais desemprego, mais dívida) deverão receber mais do que aquele que é o seu peso na economia? Todos recebem de acordo com o seu peso no PIB e na população? Ou consegue-se chegar a uma fórmula intermédia?
Que propostas servirão de base para a discussão?
Há duas grandes propostas em cima da mesa das negociações neste momento. Por um lado, a proposta de reforço do orçamento da UE. O Quadro Financeiro Plurianual (2021-27) estava ainda em discussão quando começou a crise e pode agora ser reforçado. O problema está em saber em quanto. De qualquer forma, para o reforço ser significativo, em vez de um aumento imediato das contribuições dos países, a solução está numa emissão de dívida com garantias dos Estados que se irá pagar no longo prazo.
A segunda proposta é a lançada pela França, que consiste na criação de um fundo de recuperação de 400 mil milhões de euros, também gerado através de uma emissão conjunta de dívida e também gerido pela Comissão Europeia. As duas propostas podem ser complementares.
Há ainda a proposta de Espanha, com um fundo de maior dimensão obtido através de uma emissão conjunta de dívida, e que assume desde logo que o dinheiro será entregue aos Estados sob a forma de subvenções a fundo perdido.
Onde estão os “coronabonds"?
As propostas em cima da mesa têm todas elas um elemento de mutualização da dívida, que é mais forte ou mais fraco consoante a forma como o dinheiro seria distribuído e depois amortizado. No entanto, a expressão "coronabonds" parece estar destinada a desaparecer das discussões, uma vez que se tornou tóxica em diversas capitais. E mesmo a Itália, que até há pouco tempo dizia que os "coronabonds” eram a única solução, parece já ter percebido isso.