PJ apreendeu mais de 700 fichas da PIDE numa casa em V. N. de Gaia

Documentos estavam à venda no site OLX e incluem fotografias e impressões digitais de centenas de pessoas, e ainda um dossier com as averiguações de um agente da polícia política.

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PJ

Alertada pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) para o facto de alguém estar a tentar vender na Internet um conjunto de documentos da extinta PIDE/DGS, a Directoria do Norte da Polícia Judiciária fez esta quarta-feira uma apreensão sem precedentes de materiais da antiga polícia política do Estado Novo: mais de 700 envelopes contendo fichas de identificação de outros tantos cidadãos, incluindo nome, alcunha, estado civil e outras informações, mas também uma recolha das impressões digitais de cada um e negativos fotográficos próprios dos cadastros policiais, com os visados fotografados em três posições.

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Alertada pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) para o facto de alguém estar a tentar vender na Internet um conjunto de documentos da extinta PIDE/DGS, a Directoria do Norte da Polícia Judiciária fez esta quarta-feira uma apreensão sem precedentes de materiais da antiga polícia política do Estado Novo: mais de 700 envelopes contendo fichas de identificação de outros tantos cidadãos, incluindo nome, alcunha, estado civil e outras informações, mas também uma recolha das impressões digitais de cada um e negativos fotográficos próprios dos cadastros policiais, com os visados fotografados em três posições.

Entre os materiais apreendidos conta-se ainda um livro de registo com centenas de nomes, cuja possível coincidência com os que constam dos envelopes ainda não foi estabelecida, e também aquela que é provavelmente a peça mais invulgar e de maior interesse para os historiadores: um dossier que parece ser o arquivo pessoal de um agente de investigação da PIDE, com os resultados das suas averiguações relativas a um extenso número de cidadãos.

O anúncio de venda colocado no OLX que despertou a atenção da DGLAB ainda estava esta quinta-feira activo e terá sido colocado a 15 de Abril por um utilizador que usa o nome “Malheiro” e que dá como localização a freguesia portuense de Campanhã. Na verdade, segundo esclareceu o director da PJ do Norte, Norberto Martins, numa conferência de imprensa que teve lugar esta quinta-feira à tarde na sede portuense da PJ, trata-se de “uma senhora de meia-idade” que mora em Vila Nova de Gaia e que tinha os documentos em sua casa. Confrontada pela equipa da PJ, a vendedora afirmou ter encontrado este acervo, pelo qual pedia dois mil euros, numa garagem que pertencera a um familiar.

Norberto Martins, que salientou a curiosidade de esta apreensão ter ocorrido na antevéspera do 25 de Abril, mostrou-se convencido de que estes documentos, que dizem respeito à fase final da ditadura — os mais antigos são de meados dos anos 60 e os mais recentes são já do início da década de 70 — terão estado em mãos de privados desde a queda do regime, mas lembrou que as investigações só agora estão a iniciar-se e que é cedo para aventar cenários acerca do percurso que poderão ter feito até chegarem às mãos da pessoa que os tentou vender. O acervo ainda permanecerá algum tempo nas mãos da PJ — haverá designadamente que comprovar que não se trata de falsificações, hipótese que o responsável da PJ do Norte considerou improvável — e será depois integrado, como a lei estabelece, nos arquivos da Torre do Tombo.

Boas famílias?

Entre os objectos apreendidos, Norberto Martins realçou a relevância de “um caderno que é uma espécie de processo policial” e que terá pertencido a um “agente encarregado da missão de investigar alguns cidadãos” e que deveria averiguar “o que estes faziam, se pertenciam a boas famílias, como então se dizia, e quais eram as suas inclinações políticas”. Trata-se de um dossier em cuja capa de cartolina alguém escreveu em maiúsculas, talvez com o auxílio de uma régua de letras, o nome “PINHO” seguido da identificação “agente técnico”.

A historiadora Irene Flunser Pimentel, autora de livros como A História da PIDE (2007), Biografia de um Inspector da Pide: Fernando Gouveia e o Partido Comunista Português (2008), O Caso da PIDE-DGS (2017) ou Os Cinco Pilares da PIDE (2018), não hesita em considerar, mesmo com o pouco que se sabe até ao momento, que os documentos apreendidos pela PJ prometem ser “muitíssimo relevantes” para os investigadores. E assegura que nunca lhe passou pelas mãos nenhum objecto análogo ao referido dossier com as averiguações do “agente técnico” Pinho (que muito provavelmente é um pseudónimo operacional, e não o seu verdadeiro apelido).

A historiadora lembra ainda que, no imediato pós-25 de Abril, os militares que ficaram com os arquivos da PIDE à sua guarda pediram a delegados de vários partidos políticos para os ajudarem, uma vez que os seus conhecimentos sobre a polícia política eram limitados, e que “houve gente, designadamente do PCP, que levou coisas por razões partidárias, mas também houve outras que reconheceram o nome de um amigo e pensaram: vou levar isto para lhe oferecer”.

Outra hipótese para o momento em que estes documentos foram retirados dos arquivos da polícia política do Estado Novo é o próprio assalto à sede portuense da PIDE, na Rua do Heroísmo (onde hoje funciona o Museu Militar do Porto), logo após o 25 de Abril. Invadida por uma multidão, que lançou livros e papéis pelas janelas, não teria sido impossível que alguém tivesse então levado estes papéis, que são bastante numerosos, mas, como notou Norberto Pires na conferência de imprensa, poderiam ter sido facilmente acondicionados num saco de dimensões vulgares.

Arquivos pelo chão

O director da DGLAB, Silvestre Lacerda, lembra que há um filme da RTP com uma visita de jornalistas à sede da PIDE no Porto, a seguir ao 25 de Abril, no qual se vêem “os arquivos espalhados pelo chão”. Mas inclina-se mais para a hipótese de que a subtracção destes documentos tenha ocorrido pouco depois, quando o arquivo da PIDE foi transferido da Rua do Heroísmo para um antigo armazém junto ao Douro, na freguesia portuense de Massarelos. “Aquilo tem todo o ar de ter sido um embrulho que alguém pode ter levado para casa durante essa mudança”, diz.

Segundo Silvestre Lacerda, há na Torre do Tombo alguns exemplares de “dossiers particulares com investigações em curso, que foram apreendidos logo no 25 de Abril”, mas cuja efectiva semelhança com o arquivo do agente Pinho, chamemos-lhe assim, só será possível verificar quando se conhecer melhor o conteúdo deste último.

O director da DGLAB adianta ainda que várias pessoas têm entregado na Torre do Tombo materiais da PIDE — “a última coisa que apareceu foi a escala de serviço do dia 24 de Abril, que um particular tinha levado e guardado” —, mas nada que se aproxime minimamente da dimensão deste acervo documental, com informações e negativos fotográficos de mais de 700 pessoas.

"Agente técnico"

Outra possibilidade, e que pareceria consentânea com a versão apresentada pela mulher que tentou vender os documentos, seria a de que estes papéis tivessem sido conservados pelo próprio agente Pinho. Mas o coordenador de investigação criminal da PJ do Norte, Pedro Silva, que também interveio na conferência de imprensa e com quem o PÚBLICO voltou a falar mais tarde, apresenta uma objecção de vulto a essa tese, argumentando que “não seria nada provável que um agente da PIDE tivesse em casa centenas de fichas de identificação e um livro de registos, que é um documento formal”.

Se a indicação “agente técnico” não permitiria excluir à partida que a pessoa em causa pudesse ser, não um funcionário da PIDE em sentido estrito, mas um informador diligente, que por acaso teria a categoria profissional, então bastante vulgar, de agente técnico, Pedro Silva assegura que “Pinho” era mesmo um agente da PIDE. “O dossier é uma peça interna, com relatórios policiais, que ele assina e endereça ao seu superior hierárquico”, explica. “Para cada pessoa que investiga, faz relatórios pormenorizados do que apurou: o nome dos pais, a morada, o que faz, as inclinações políticas, se está envolvido em sindicatos…”. Mas em nenhum momento, acrescenta, este agente indica as suas fontes de informação, o que na sua opinião só vem confirmar que estamos perante um agente de investigação profissional.

A página deste dossier que o PÚBLICO pôde ver na sede da PJ estava dactilografada, mas parecia mais uma reprodução a papel químico do que o dactiloscrito original. Pedro Silva lembra que tirar duas cópias era então o procedimento burocrático normal e admite que o agente em causa fosse compilando neste dossier uma cópia dos relatórios que enviava ao seu superior.

A PJ vai agora investigar as circunstâncias em que estes papéis chegaram às mãos da vendedora — que em teoria pode ainda vir a ser constituída arguida —, e provavelmente só virão a ser incorporados na Torre do Tombo daqui a alguns meses.