A Galp tem de cair

A indústria petrolífera à escala global já está de mão estendida para receber apoios públicos e reclamar-se como paladino de uma futura recuperação económica. Mas os fósseis são uma âncora genocida que arrasta a Humanidade para o fundo.

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Nuno Ferreira Santos

Na segunda-feira o mercado de futuros de petróleo do West Texas fechou a negociar em 37 dólares negativos o barril. Não existe paralelo histórico para isto. É o tempo em que vivemos: a História não acabou nem abrandou. No entanto, também não faz sentido achar que o mundo se descontrolou repentina e inadvertidamente. Os riscos sociais, económicos e ambientais do capitalismo global sempre estiveram presentes e sempre foram ignorados na troca pelo rendimento rápido e sem restrição. Hoje começamos a sentir esses efeitos. É também o tempo de escolher entre assistir à História ou participar nela. 

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Na segunda-feira o mercado de futuros de petróleo do West Texas fechou a negociar em 37 dólares negativos o barril. Não existe paralelo histórico para isto. É o tempo em que vivemos: a História não acabou nem abrandou. No entanto, também não faz sentido achar que o mundo se descontrolou repentina e inadvertidamente. Os riscos sociais, económicos e ambientais do capitalismo global sempre estiveram presentes e sempre foram ignorados na troca pelo rendimento rápido e sem restrição. Hoje começamos a sentir esses efeitos. É também o tempo de escolher entre assistir à História ou participar nela. 

Ironicamente, uma década da catástrofe do Deepwater Horizon da BP no Golfo do México, o maior derrame petrolífero da história da indústria, o contrato para as entregas petrolíferas de Maio de 2020 nos Estados Unidos bateu o preço mais baixo de sempre — na verdade as petrolíferas pagaram para se livrar do petróleo —, batendo o recorde de 10 dólares de 1986. Os preços do contrato das entregas de Junho também caíram 15% para os 20 dólares, e poderão continuar a cair por contágio e porque os problemas que deram origem a este preço negativo não passaram. No Canadá, o petróleo também está a ser “vendido” a preços negativos, o que tenderá a arruinar a caríssima e também altamente destrutiva indústria das areias betuminosas. 

Em Janeiro, o barril estava acima dos 60 dólares, mas com a crise do novo coronavírus a procura colapsou, enquanto a produção tentou manter-se (na verdade, na Arábia Saudita e Rússia até aumentou). A economia hoje consome menos 30 milhões de barris de petróleo por dia do que aquilo que consumia em Janeiro, enquanto produz uma quantidade similar — cerca de 100 milhões de barris por dia. O custo de fechar os poços de petróleo e voltar a reactivá-los é muito elevado ou mesmo impossível, especialmente quando falamos da indústria americana, baseada na extracção por fracking. Todo o petróleo produzido tem de ficar dentro de infra-estruturas: tanques, refinarias, armazéns, oleodutos, petroleiros. Como se produz muito mais do que se consome, a infra-estrutura está a ficar cheia. O mundo tem uma capacidade global estimada de armazenamento de 6,8 mil milhões de barris, que já está ocupada acima de 70%, embora distribuída regionalmente. Estima-se que nos próximos dias o Brasil, a Nigéria e Angola esgotem a sua capacidade de armazenamento, enquanto a capacidade de armazenamento dos EUA deverá esgotar-se nas próximas duas semanas.

A procura de petróleo caiu portanto 30% desde o início do ano, mas nos Estados Unidos, a produção só foi reduzida em 5%. As garantias que Trump deu desde o primeiro momento à indústria americana terão levado a esta situação. Mesmo agora, os Estados Unidos só prevêem reduzir a sua capacidade produtiva para 11 milhões de barris por dia até ao final do ano (comparando com 13,3 milhões do final de 2019). Trump vai comprar 75 milhões de barris para armazenar na “reserva estratégica”, mas só consegue armazenar 500 mil barris por dia, e o Departamento da Energia propôs um plano para apoiar empresas que têm reservas não exploradas de 365 milhões de barris de petróleo, e pagar-lhes para não produzirem até ao preço subir. Para fazer os preços subirem fez também um acordo com o OPEC+ para cortar 9,7 milhões de barris por dia (o que é muito menos do que a redução de 30 milhões), pagando ao México para cortar quase 25% da sua produção, mas o corte só entra em vigor para o mês que vem, o que significa que neste momento há navios a ser carregados para levar petróleo para sítios onde poderão nem sequer ser descarregados. 

Haverá falências em massa de pequenos produtores nos Estados Unidos e resgates e/ou nacionalizações. Com um preço até ao final do ano de 20 dólares por barril, mais de 500 produtores petrolíferos entrarão na bancarrota, enquanto se o valor for mais baixo, poderão ser mais de 1100 petrolíferas, segundo análise da Rystad Energy. As gigantes Chevron e Exxon Mobil poderão vir a ser beneficiárias destas bancarrotas, se sobreviverem ao colapso (a Exxon perdeu 38% em bolsa desde o início do ano e a Chevron perdeu 31%). Em 2019, houve um investimento privado de 64,2 mil milhões na indústria americana. Milhares de empresas de participações privadas vão colapsar por causa disto, mas abutres com capital deverão avançar na perspectiva de uma recuperação rápida da procura e confiando nos resgates públicos. Não é por isso de estranhar que Trump tente de todas as maneiras que acabe a quarentena por causa da covid-19, apesar de o número de infectados e de mortes nos Estados Unidos continuar a aumentar. Ainda assim, o actual estado da indústria deverá ser o fim da revolução do fracking, que só era possível por causa do petróleo caro. Com o barril de Brent em Abril a 20,82 dólares, menos de um terço do valor de Janeiro, há também uma forte ameaça para os petroestados: Rússia, Venezuela, Arábia Saudita, Angola, Iraque, Nigéria, entre outros.

O preço pode subir? De 40 dólares negativos, claro, mas o desemprego em massa nos Estados Unidos (e no mundo) significa que mesmo o extremo optimismo de esperar um regresso rápido às deslocações de carro, férias, viagens e comércio não passará disso. A procura pelo petróleo também não vai explodir. 

No dia 24 de Abril, a Galp, a maior petrolífera portuguesa, vai ter a sua assembleia-geral de accionistas. Apesar do seu enfoque principalmente na refinação (tendo parado já as refinarias de Matosinhos e Sines), é a maior produtora de petróleo e gás portuguesa (com concessões em Angola, Moçambique e Brasil) e, apesar da florida retórica sobre combate às alterações climáticas e transição energética, baseada em mais gás fóssil, esta empresa anunciou no início deste ano que queria duplicar a sua produção de petróleo e gás. Nesta assembleia, os accionistas vão votar remunerar-se em 318 milhões de euros, depois de ainda agora terem despedido trabalhadores na refinaria de Sines por causa da quebra de produção (ao mesmo tempo que aumentaram unilateralmente o horário de trabalho). A crise da indústria petrolífera já chegou à Galp, e o seu administrador aproveitou a quebra do valor das acções para reforçar o seu peso na estrutura accionista (a Galp desvalorizou 35% em bolsa desde o início do ano).

A campanha Galp Must Fall ("Galp tem de cair") irá contestar esta assembleia-geral no dia 24. Os dividendos devem ser utilizados para formar quem trabalha na Galp para a transição energética e para preparar esta empresas para uma modificação fundamental: ela tem de ser nacionalizada e transformada numa das bases (em conjunto com a Efacec) de uma indústria nacional de energias renováveis, em todas as suas vertentes. Este é um passo essencial para termos uma energia pública e não-fóssil em Portugal, apesar não ser suficiente. Vivemos numa crise climática global que tem de ser travada e para isso tem de se salvar quem trabalha e deixar cair accionistas e fósseis (petróleo e gás).

A indústria petrolífera à escala global já está de mão estendida para receber apoios públicos e reclamar-se como paladino de uma futura recuperação económica. Mas os fósseis são uma âncora genocida que arrasta a Humanidade para o fundo. Resgatá-la para manter a produção, encher de biliões os bolsos de accionistas privados enquanto são libertadas para a atmosfera as moléculas de gases com efeito de estufa que nos condenam a destruir as condições que nos permitiram criar civilizações humanas seria um dos maiores crimes da História da Humanidade. Resgatar estas empresas e manter o seu modelo de negócio (quer com propriedade pública, quer com propriedade privada) seria a consumação de que, de facto, os governos à escala global querem acelerar o colapso climático.