Ponham cravos nos bancos da Assembleia
Sim, é importante assinalar a democracia. Sim, é importante celebrar o 25 de Abril. Sim, a Assembleia da República é um dos símbolos da democracia. Mas não faz sentido uma comemoração contra as regras da biologia e da sobrevivência.
Sou um daqueles crentes na força ilocutória dos símbolos e dos marcos. Vejo por isso o 25 de Abril como emblema da liberdade, da igualdade, solidariedade e da condignidade dos portugueses. Sinto, também na esteira desta fé, que o 25 de Abril deve ser comemorado. Mas não com ajuntamentos no parlamento. Perdoem-me as palavras, não se apelida de ajuntamento uma reunião de gente de prole. São sim assembleias ou concílios. Não nos esqueçamos dos refinamentos devidos ao chic que as circunstâncias impõem.
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Sou um daqueles crentes na força ilocutória dos símbolos e dos marcos. Vejo por isso o 25 de Abril como emblema da liberdade, da igualdade, solidariedade e da condignidade dos portugueses. Sinto, também na esteira desta fé, que o 25 de Abril deve ser comemorado. Mas não com ajuntamentos no parlamento. Perdoem-me as palavras, não se apelida de ajuntamento uma reunião de gente de prole. São sim assembleias ou concílios. Não nos esqueçamos dos refinamentos devidos ao chic que as circunstâncias impõem.
Sou lúcido da importância de uma consciência histórica, da certeza que o passado, cada vez mais desrespeitado e encolhido, nos traz os maiores sermões e os maiores princípios. O passado, quando escutado, apetrecha os homens, sociedades e discursos de ferramentas para o que aí vem. “O que aí vem” costuma ter traços iguais “àquilo que já veio”. Se a História fosse mais vezes contada, talvez não fossemos tão descrentes em relação a uma pandemia que se avizinhava a cada quarteirão. E eu que o diga, que descria do impacto do vírus na redoma europeia.
A História também nos ensina para alguns sinais de construção e rutura de alianças em períodos de crise, em situações em que as soberanias se voltam para dentro das fronteiras, individualizando-se os países com novos “urras” de Estado-nação. Isto também nos faz pensar a questão da maior integração/debilidade da UE. Portanto, memória histórica recomenda-se.
Não obstante a força dos simbolismos, vivemos num mundo de vetores, muitas vezes perpendiculares, de fenómenos, muitas vezes inusitados, e aí os símbolos esbarram na gélida realidade onde há a tremura das crenças no simbolismo. Instala-se a dúvida. E hoje somos confrontados com a dúvida da utilidade simbólica de uma comemoração do 25 de Abril no parlamento. É a comemoração do 25 de Abril ou o próprio 25 de Abril que se pretende hastear?
A resposta é fácil: é o 25 de Abril. Por isso, não faz sentido uma comemoração contra as regras da biologia e da sobrevivência (convém ressaltar as centenas de mortes em Portugal pelo novo coronavírus, que os referenciais italiano e espanhol fazem diluir em preponderância). Alguém sabe responder quantos daqueles que vão à comemoração no parlamento estão infetados? E quantos não estão?
Sim, é importante assinalar a democracia.
Sim, é importante celebrar o 25 de Abril.
Sim, a Assembleia da República é um dos símbolos da democracia.
Mas Assembleia da República não é “a” casa da democracia. É um compartimento da democracia. É apenas uma das casas. A democracia também tem uma parte não institucional, porque o debate e as escolhas livres também se fazem fora das instituições, em manifs, petições públicas e media. E também aí se fazem contratos e consensos, dada a porosidade entre as instituições e o seu entorno.
O facto de haver esta polémica em redor das comemorações do 25 de Abril já é per se definidor da importância do 25 de Abril. Mas também o é da importância do combate à covid-19.
Finalmente, vamos a comemorações, porque vão ser tomadas todas as medidas sanitárias, vão ser tomados os devidos distanciamentos e, sobretudo, sabemos que nenhum dos celebrantes se encontra infetado.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico