Definir e financiar a resposta à crise – um contributo para o Conselho Europeu
O Conselho Europeu não pode falhar nas orientações à adoção dos mecanismos necessários para a construção da resposta europeia adequada.
A crise que enfrentamos devido à covid-19 tem uma dimensão humana ainda desconhecida e um impacto de grande magnitude nas economias e nas contas públicas dos países. A União Europeia e os Estados-membros precisam de atuar coletivamente de forma decisiva e solidária e no interesse de todos para conter, primeiro a propagação do vírus e prestar cuidados de saúde, depois para enfrentar as repercussões económicas e sociais da crise. As medidas que adotarmos hoje vão condicionar as próximas décadas.
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A crise que enfrentamos devido à covid-19 tem uma dimensão humana ainda desconhecida e um impacto de grande magnitude nas economias e nas contas públicas dos países. A União Europeia e os Estados-membros precisam de atuar coletivamente de forma decisiva e solidária e no interesse de todos para conter, primeiro a propagação do vírus e prestar cuidados de saúde, depois para enfrentar as repercussões económicas e sociais da crise. As medidas que adotarmos hoje vão condicionar as próximas décadas.
Na semana passada, o Eurogrupo acordou num pacote de medidas, sem precedentes, de mais de 500 mil milhões de euros. Ainda que aquém do desejado, este pacote inclui elementos significativos de resposta europeia, que advém, nomeadamente, de taxas de juros e de condições de financiamento quer no instrumento SURE (o instrumento de apoio temporário para atenuar os riscos de desemprego numa situação de emergência), quer na linha de crédito Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).Para além disso, pediu à Comissão Europeia que apresentasse um Orçamento Plurianual 2021/2027 (QFP) revisto e exigente para ter em conta a recuperação económica e que inclua um Fundo de Recuperação.
A proposta atual da Comissão para o QFP, já de maio de 2018 (!), é muito reduzida e não está dotada nem dos montantes, nem dos instrumentos para servir de catalisador da resposta europeia agora necessária. Sabemos que a Comissão aceitou o desafio do Parlamento Europeu e do Eurogrupo e irá apresentar uma nova proposta no final deste mês. Uma proposta que, na linha das prioridades da UE, permita reforçar a resiliência da União, repor o Mercado Interno (as ajudas de Estado, necessárias, autorizadas recentemente pela Comissão, vão gerar distorções no Mercado Interno) e recuperar as economias.
É neste contexto que se insere o Fundo de Recuperação ou as Recovery Bonds (Obrigações de Recuperação pedidas na semana passada pelo Parlamento Europeu). O Fundo de Recuperação, com uma incidência especial nos 2/3 primeiros anos do QFP, com a adequada responsabilidade democrática, incluindo o controle pelo Parlamento Europeu, tem de ser dotado dos recursos financeiros suficientes para apoiar de forma efetiva as pessoas, as economias e os Estados-membros.
Por isso, precisamos que o Conselho Europeu desta semana dê orientações claras desde logo à Comissão Europeia que deve apresentar a sua proposta sobre, pelo menos, estes cinco pontos:
1. Dimensão: o modelo de financiamento tradicional do QFP é desadequado e insuficiente. O Fundo de Recuperação, um mecanismo inovador, deve ser adicional e significativo o suficiente para estar pronto para atuar, com o estímulo adequado, em função da gravidade da crise e da dimensão das necessidades.
2. Ações a financiar: três opções possíveis, podendo haver uma conjugação entre elas: (i) apoiar os programas específicos da UE já existentes como as politicas de coesão, ou a PAC ou a politica de investigação, que são chave na resposta que hoje se impõe, reforçando-os nos primeiros anos do QFP; (ii) apoiar um novo Instrumento de Recuperação e Resiliência das Economias Europeias que apoie investimentos nacionais que forneçam estímulo macroeconómico e projetos que permitem construir uma economia mais sustentável e salvar e criar empregos; (iii) apoiar projetos comuns da UE relacionados com a implementação do Pacto Verde Europeu, com uma política de relançamento industrial, transição digital e energética, e/ou setores estratégicos da UE, ou ainda projetos que garantam a soberania europeia nas cadeias estratégicas de valor.
O financiamento destas ações deve revestir maioritariamente a forma de subvenções; mas conhecemos bem os limites do consenso europeu nesta matéria. Serão, portanto, seguramente complementadas por empréstimos que esperamos venham a ter um menor peso.
3. Impacto nas Dívidas Nacionais: para garantir que não haja impacto nas dívidas nacionais, a Comissão, em nome da União, deveria contrair empréstimos no mercado com duração ou maturidades muito longas e taxas de juros baixas, sendo respaldada pelo orçamento da UE. O BCE deveria atuar como último recurso. A Comissão seria o emissor do título. A UE deve ser responsabilizada pelo seu reembolso. Seguindo a mesma lógica das garantias de mecanismos já hoje existentes, fornecidos pelos Estados-membros, de forma a que o Eurostat considere que a dívida incorrida não seja contabilizada como dívida pública.
4. Garantias: a emissão de dívida sem garantias limita-se às margens entre os limites máximos de despesa no QFP e os limites máximos de receita fixados na “Decisão de Recursos Próprios”, hoje fixados em 1,2% do Rendimento Nacional Bruto. A Comissão pode/deve optar por uma nova proposta de Decisão Recursos Próprios em que aumente os limites máximos (pode precisar de ir até 2% do RNB). Conhecemos a dificuldade, desde logo, do tempo necessário para a sua aprovação (na última vez que se fez esta mudança, a proposta levou mais de dois anos a ser adotada). Para isso tem de haver vontade política e compromisso no Conselho Europeu de forma a que a decisão possa entrar em vigor no dia 1 de janeiro de 2021. Ou, em alternativa, a UE teria de receber garantias irrevogáveis e incondicionais dos Estados-membros (dada a dimensão considerável deste fundo).
5. Reembolso: parece improvável que um acordo sobre obrigações perpétuas seja possível. As características do reembolso – que devem ser de longuíssimo prazo – devem ser previamente decididas e as suas obrigações devem prever principalmente novos recursos próprios, devendo o restante ser uma percentagem do RNB de cada Estado-membro no momento do reembolso. Sobre os recursos próprios, várias hipóteses estão já há algum tempo em cima da mesa, desde uma taxa sobre os plásticos até uma taxa sobre a economia digital – um consenso ao nível da OCDE poderá ser alcançado em breve e esse setor provavelmente será um dos menos afetado pela crise –, um mecanismo de ajustamento transfronteiriço sobre o carbono ou matéria coletável comum do imposto sobre as sociedades (MCCIS).
O Conselho Europeu não pode falhar nas orientações à adoção dos mecanismos necessários para a construção da resposta europeia adequada.
Co-relatora para o Quadro Financeiro Plurianual no Parlamento Europeu, ex-secretária de Estado dos Assuntos Europeus
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico