O apagão mediático português no Brasil
Em 2000, ao fazer o balanço das comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil, Eduardo Prado Coelho escrevia que Portugal, se quisesse assegurar uma presença relevante além Atlântico, teria de “actuar em termos muito intensos de indústria cultural e ocupação mediática”. De então para cá, nada disso aconteceu, bem pelo contrário – globalmente, a presença mediática portuguesa no Brasil, nestes últimos vinte anos, recuou.
Há duas décadas atrás, no dia 22 de abril de 2000, a cerimónia final das comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil terminava em tons sombrios.
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Há duas décadas atrás, no dia 22 de abril de 2000, a cerimónia final das comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil terminava em tons sombrios.
Concebida para culminar em apoteose, celebrando ao mesmo tempo a nacionalidade e as boas relações com Portugal, a festa em Porto Seguro, com a presença de Fernando Henrique Cardoso e Jorge Sampaio, ficou marcada pelo descontentamento dos índios e o melancólico episódio da réplica de uma caravela quinhentista que era suposto singrar triunfalmente até Salvador, mas meteu água e acabou por naufragar...
Enquanto isso, apoiados pelo Movimento dos Sem Terra e pela Igreja Católica – Conselho Indigenista Missionário, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil –, largo número de índios pataxós, xavantes e outros irrompia no recinto do evento contestando as celebrações, acabando por envolver-se em violentos confrontos com as forças policiais que garantiam a segurança do local.
Era o eclodir, uma vez mais, da(s) nunca inteiramente superada(s) fissura(s) da nacionalidade brasileira, na qual se confrontam até hoje – entre índios, negros, brancos luso-descendentes e outros – diferentes e por vezes contraditórias narrativas sobre a própria identidade. Da independência para cá, o “todo homogéneo e compacto” de cuja necessidade já falava José Bonifácio avançou muito; primeiro, logo na segunda metade do século XIX, quando da guerra do Paraguai (1864-1870), em que participaram milhares de escravos, e depois, na segunda metade do século XX, com o avanço das comunicações e graças, em particular, à difusão nacional da rede Globo garantida pelos militares. Mas hoje ainda persistem discrepâncias e clivagens internas, como ficou patente então em Porto Seguro.
Resultado dessas diferentes correntes que percorrem a ideia nacional, a visão do Governo brasileiro nas comemorações dos 500 anos já não era à partida – apesar das aparências – coincidente com a visão portuguesa. Enquanto Portugal tendia a celebrar a grandeza do seu passado histórico, o Brasil assinalava 500 anos de existência, uma vez que – de acordo com a sua auto-imagem – esta não se conta apenas a partir da independência. Depois, com as manifestações e confrontos de Porto Seguro, a própria ideia que Portugal até hoje alimenta de um passado colonial mais ou menos benigno, de que o Brasil seria o melhor exemplo, também foi questionada.
Em 2000, ao fazer o balanço das comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil, Eduardo Prado Coelho escrevia que Portugal, se quisesse assegurar uma presença relevante além Atlântico, teria de “actuar em termos muito intensos de indústria cultural e ocupação mediática” (Coelho, PÚBLICO, 2000). De então para cá, nada disso aconteceu, bem pelo contrário – globalmente, a presença mediática portuguesa no Brasil, nestes últimos vinte anos, recuou.
Em termos televisivos, por exemplo, os media portugueses no Brasil estão reduzidos à presença da SIC na rede de distribuição por cabo e da RTP na difusão por satélite. A RTP estava antes também no cabo, mas a Globo retirou-a em 2004 e nem os esforços da televisão pública nem a ação da diplomacia portuguesa conseguiram até hoje reverter a situação. Entretanto, nem a SIC nem a RTP têm programação própria para o Brasil, limitando-se basicamente a compor as suas grelhas com base nos programas que já têm em Portugal, sem qualquer esforço específico de adaptação, apresentação ou marketing para o mercado brasileiro, não dialogando, portanto, verdadeiramente com a população do país e sendo por isso vistas essencialmente pelos diferentes núcleos das comunidades portuguesas. Por outro lado, inexplicavelmente, a televisão pública tem há muito um canal RTP-África, mas nunca teve nem tem uma RTP-Brasil.
Por seu turno, a Lusa, depois de uma aposta forte no final dos anos 90, quando – acompanhando o começo da internacionalização da economia portuguesa pelo Brasil – chegou a ter um escritório em Brasília e um correspondente em São Paulo, acabou, ao cabo de poucos anos, por desistir do plano estratégico de se transformar na grande agência de comunicação do mundo lusófono. Depois, entre 2004 e 2010, ainda tentou uma nova estratégia, apostando na “tropicalização” das suas notícias através de um desk local em São Paulo com jornalistas brasileiros em regime de outsourcing. Apesar do sucesso dessa aproximação, traduzido em crescente utilização das suas matérias pelos media locais e avanços na definição de novas alianças criando nichos em órgãos de imprensa de grande prestígio – incluindo projetos de uma ligação à China via Macau –, a partir de 2010, a Lusa voltou bruscamente costas ao mercado brasileiro, não dando explicações a ninguém e deixando assim, nos meios mediáticos locais, uma memória amarga difícil de superar. Na prática, a agência portuguesa arriou bandeira no Brasil, voltando ao que era no começo dos anos 90 e até antes – mais virada para dentro e para África, em prejuízo do maior país da lusofonia.
Por outro lado, o site da agência portuguesa é ainda hoje um dos mais fechados, quando no mercado brasileiro outras agências internacionais e sites oficiais ou oficiosos de outros países (Reuters, BBC, DW, RFI, El País...) oferecem acesso amplo às suas matérias em língua portuguesa, muitas delas elaboradas especificamente para o mercado brasileiro. Nestas circunstâncias, não espanta que os progressos conseguidos em meados da década se tenham perdido e hoje as notícias de/sobre Portugal acabem por ser difundidas no Brasil por outras agências, em particular a espanhola EFE.
Também os privados não tiveram até hoje maior êxito. A tentativa de penetração no mercado brasileiro levada a cabo em 2009 pela Ongoing – jornais O Dia, Meia Hora e Brasil Económico – acabou por se gorar na sequência da falência do BES e do colapso da PT e da própria Ongoing (2014/2016).
Reciprocidade assimétrica
O contraste não podia ser maior no que respeita aos media brasileiros em Portugal. A partir de 2006/2007, aparentemente estimuladas pelo crescimento da comunidade brasileira no nosso país, duas grandes redes de televisão – Record e Globo – começaram a abordar o mercado mediático português, colocando ambas, um pouco mais tarde (2009), correspondentes em Lisboa e abrindo também na capital portuguesa sedes próprias como base das suas atividades para o conjunto da Europa. Tratou-se de um marco, quer para uma quer para outra estação, uma vez que até aí a Record não tinha correspondentes na Europa e a Globo tradicionalmente cobria o velho continente a partir de Londres e/ou Paris/Genebra. Desde aí, ambas as estações têm visto a sua atividade crescer em Portugal, tendo a Record inaugurado nova sede em Lisboa (2014) e a Globo alargado a sua presença para todos os canais de distribuição da TV por cabo, onde os seus programas lideram, muitas vezes, as audiências.
Também a televisão pública brasileira está presente na TV por cabo em Portugal através da TV Brasil Internacional (inaugurada em 2010), da Empresa Brasil de Comunicação/EBC. O Brasil tem assim garantida presença muito forte no mercado mediático português: para além da grande cobertura pro bono – em geral benévola – de que desfrutam os seus assuntos de toda a ordem nos grandes órgãos de media portugueses, está diariamente em todos os canais de distribuição de televisão por cabo através de duas grandes estações privadas e uma pública. Não é pouca coisa.
É esta situação, a que se junta a fraca ou nula projeção dos meios de comunicação social portugueses no Brasil (o jornal PÚBLICO tem site específico para o Brasil, bastante visto, mas é a exceção que confirma a regra e não altera o quadro geral), que permite qualificar a situação como apagão mediático português no Brasil.
A reciprocidade assimétrica não deixa, é certo, de reflectir a enorme diferença de dimensões, recursos e capacidades entre os dois países. De alguma forma é natural que assim aconteça – como sucede também, por exemplo, no caso das antigas colónias britânicas, onde a produção televisiva é dominada não pela ex-potência colonial, mas pela maior e mais antiga colónia, os EUA.
No caso de Portugal e Brasil, dada a desproporção existente entre os dois países, haverá sempre uma diferença de impacto assinalável. Para já não falarmos do exemplo clássico das telenovelas, é garantido que qualquer ação cultural do Brasil em Portugal, ainda que pouco relevante, terá sempre assegurada ampla repercussão, enquanto a inversa não é verdadeira. Mas justamente por isso é que se impõe da parte portuguesa um repensar da sua estratégia de comunicação, a começar pelos Tratados com o Brasil, nos quais a questão dos media está ausente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico