O vírus pouco original do medo
A Assembleia da República irá celebrar Abril, como é sua obrigação, e faz muito bem. Vai fazê-lo, naturalmente, com as restrições impostas pelas circunstâncias, mas não pode deixar de o fazer. Contra, apenas os do CDS e o penduricalho da extrema-direita, porque o que na verdade os incomoda não são as comemorações do 25 de Abril, é o 25 de Abril em si mesmo.
Há exactos 60 anos, num tempo em que era preciso ter muita coragem para dizer e escrever coisas incómodas, Alexandre O'Neill publicou um dos poemas mais emblemáticos e mais esclarecedores sobre a realidade que então se vivia em Portugal. Chama-se “Poema pouco original do medo” e termina com um aviso que, lido agora, soa a premonição: “O medo vai ter tudo / quase tudo / e cada um por seu caminho / havemos todos de chegar / quase todos / a ratos // Sim / a ratos”.
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Há exactos 60 anos, num tempo em que era preciso ter muita coragem para dizer e escrever coisas incómodas, Alexandre O'Neill publicou um dos poemas mais emblemáticos e mais esclarecedores sobre a realidade que então se vivia em Portugal. Chama-se “Poema pouco original do medo” e termina com um aviso que, lido agora, soa a premonição: “O medo vai ter tudo / quase tudo / e cada um por seu caminho / havemos todos de chegar / quase todos / a ratos // Sim / a ratos”.
Pior, muito pior do que o coronavírus, é este vírus do medo e da irracionalidade que hoje ameaça contaminar uma boa parte de nós. Combater um é tão prioritário como contrariar o outro, e essa é uma obrigação de todos: dos governos, das oposições, dos médicos, das forças de segurança. E dos jornais, das rádios, das televisões. Dos cidadãos em geral, enfim, sobretudo daqueles para quem a cabeça não é um mero adorno na parte de cima do corpo.
Porque o medo é uma característica comum a todas as espécies animais, mas a diferença é que os humanos – alguns, pelo menos – conseguem encontrar maneiras eficazes de o defrontar. É isso que distingue os corajosos dos cobardes, porque só os tolos não sentem medo em momentos de perigo. Por isso é necessário saber como controlar o pânico, que mais não é do que o medo em formato irracional. Há, portanto, que manter o discernimento, única maneira eficaz de o derrotar.
O medo é também a principal arma de que se servem todos os ditadores, e os que aspiram a sê-lo, para manipular e subjugar os povos. Juntamente com a desinformação e a mentira, o medo cria as condições ideais para que pessoas normais passem a agir de modo anormal e consigam até condescender com valores e atitudes que, de outra forma, nunca aceitariam.
Só assim se percebe por que motivo ainda há quem leve a sério os delírios de Trump e de Bolsonaro, os desvarios grotescos de Ventura ou as patetices populistas daquele rapaz que manda no CDS e cujo nome de momento não me ocorre.
Nos Estados Unidos até já há quem defenda uma guerra contra a China, como castigo pelo vírus que terá tido origem naquele país. Foi dito assim mesmo, há poucos dias, por Lou Dobbs, comentador e apresentador televisivo da Fox Business, um dos canais favoritos de Trump: “Se a perda de 31 mil vidas americanas não justifica uma guerra, o que é que justifica?”
Por cá, ainda ninguém foi tão longe, mas nem por isso deixa de haver sinais igualmente preocupantes desta epidemia de medos descontrolados. Só assim se explica a adesão de certas pessoas, incluindo alguns respeitáveis democratas, à ideia (nada inocente) de que a Assembleia da República deveria abster-se este ano de comemorar o 25 de Abril, em virtude do período de contingência que estamos a viver.
Não sou grande apreciador de sessões solenes e penso que as comemorações oficiais da revolução terão de ser rapidamente reinventadas, para que não se tornem num mero ritual enfadonho. Em condições normais, o 25 de Abril deve ser celebrado sobretudo onde aconteceu: na rua, já que foi a desobediência civil às instruções militares de confinamento que transformou o que poderia ter sido um mero golpe de Estado numa revolução a sério.
Mas isto não invalida que o parlamento não possa, e não deva, continuar a celebrar o dia inicial, mesmo – ou sobretudo – numa altura como esta. Porque o vírus suspendeu a nossa vida, mas não cancelou a democracia. E porque, goste-se ou não, é naquela casa e a partir dela que a democracia se exprime e se exerce, todos os dias – com mais ou menos defeitos, com maiores ou menores deformações. E os que lá estão não se representam apenas a si próprios, antes são mandatários do povo que os elegeu e que é muito mais vasto do que o conjunto de indignados das redes sociais.
A Assembleia da República irá, portanto, celebrar Abril, como é sua obrigação, e faz muito bem. Vai fazê-lo, naturalmente, com as restrições impostas pelas circunstâncias (apenas 76 dos 230 deputados e um número escasso de convidados), mas não pode deixar de o fazer. Foi isto que entendeu, e decidiu, a esmagadora maioria dos deputados. Contra, apenas os do CDS e o penduricalho da extrema-direita, porque o que na verdade os incomoda não são as comemorações do 25 de Abril, é o 25 de Abril em si mesmo.
Quanto ao pequeno e médio escarcéu que a decisão provocou, esse só pode explicar-se por questões de má-fé, de ingenuidade ou de medo. Se a primeira é criminosa e a segunda é lamentável, o terceiro é mais perigoso do que qualquer pandemia, e ataca em força nos momentos de maior fragilidade social e humana. Tal como o coronavírus, o medo também não conhece fronteiras e não distingue raças, nem credos, nem classes sociais. A diferença é que, para ele, já existe uma vacina.