Há uma solução para que todos — incluindo tribunais — parem de destruir ninhos de andorinhas-dos-beirais

Há tribunais que contratam empresas de desinfestação para impedir as andorinhas de nidificarem nas fachadas. Castelo de Vide vai instalar solução proposta pela associação ambientalista Fapas para mostrar que podemos conviver com elas. Em qualquer ponto do país.

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No Alentejo, os cabos pejados de andorinhas são uma imagem icónica do Verão Juan de Vojníkov/Creative Commons

Uma estrutura simples, com a função de uma prateleira, pode ser a solução para acabar com uma guerra quase “invisível”, movida por particulares mas muito também por entidades públicas, contra um dos pássaros mais entranhados no nosso imaginário colectivo. Incomodados com os excrementos das andorinhas, e com os riscos para a saúde pública, vários tribunais do Alentejo, por exemplo, tentam, ano após ano, que o Instituto para a Conservação da Natureza os autorize a impedir a nidificação destas aves. O Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens (Fapas) acredita que há uma alternativa simples, já a testou numa casa em Marvão, e em Castelo de Vide o município quer alargar a experiência a vários edifícios da sede do concelho para mostrar que é possível preservar o património arquitectónico sem pôr em causa este outro património, natural.

O ambientalista Serafim Riem, um homem do Norte conhecido como o Dr. dos Pássaros, no Alto Alentejo, onde tem uma propriedade, descobriu há muito o “desprezo” das entidades públicas pelos ninhos destas aves migradoras que regressam a Portugal, e à Europa, todas as primaveras. Em 1999, o Fapas, movimento que ele ajudara a fundar no início daquela década, colocou o Estado português em tribunal pela destruição de 400 ninhos de andorinha-dos-beirais nas fachadas do Tribunal de Nisa. Numa acção cautelar exigiam a retirada das vedações e espigões colocados junto a beirados e sobre as janelas. Perderam em casa do adversário, o próprio tribunal, onde o caso foi julgado em primeira instância, perderam na relação de Évora mas acabaram a conseguir ganho de causa no Supremo Tribunal de Justiça, logo no ano seguinte. 

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Colónias “despejadas” de tribunais

A andorinha-dos-beirais, que é das cinco espécies de andorinhas que nidificam em Portugal aquela que, pelos lugares em que constrói os ninhos, mais se aproxima dos humanos, tem da parte destes um comportamento dúbio. Se Bordallo intuiu que as amávamos, enquanto símbolo do eterno retorno, do amor, e da fidelidade, a ponto de criar no século XIX uma peça de cerâmica cujo sucesso perdura até hoje, a realidade, no terreno, e no que às de de carne e osso diz respeito, é outra. Muitos particulares convivem mal com a sujidade que os seus ninhos, a que elas regressam ano após ano, provocam quando estão habitados, e a solução simples, para isso, tem sido a destruição destas estruturas. Fora do tempo de nidificação, eventualmente. Mas nem faltam notícias de ninhos destruídos na fase de postura ou de alimentação dos juvenis, que acabam por morrer.

No caso das entidades públicas, a situação tem sido agravada por envolver, muitas vezes, colónias inteiras, que aproveitam a protecção concedida por estes imóveis de maiores dimensões. E isto apesar do caso de Nisa, em que, numa decisão que teve Pinto Monteiro, futuro Procurador-Geral da República, como relator, o Supremo lembrava que “o artigo 9.º da Constituição da República Portuguesa impõe como tarefas fundamentais do Estado a promoção, a efectivação dos direitos ambientais e a defesa da natureza e do ambiente”. Nos últimos anos, a propósito de obras de requalificação de vários edifícios do Ministério da Justiça na região, o Instituto para a Conservação da Natureza tem sido confrontado com pedidos de autorização para eliminação de ninhos de andorinhas. 

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A primeira estrutura proposta pelo Fapas foi montada na Beirã, em Marvão DR/Miguel Dantas da Gama

Pelo que o PÚBLICO apurou têm sido dadas licenças para a retirada dos ninhos, condicionadas, por exemplo, às áreas dos edifícios sobre portas e janelas, onde é óbvio o risco de queda dos excrementos sobre transeuntes e funcionários que ali trabalham, mas, no terreno, o próprio ICNF foi verificando que as autorizações eram aproveitadas para intervenções muito mais amplas, abrangendo grande parte do edificado, por vezes com efeitos perniciosos para esta espécie. Que não está ameaçada mas que tem visto, nos últimos anos, a sua população decrescer ligeiramente na Europa, segundo os dados de 2018 do censo pan-europeu de aves comuns, em que colabora a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves. 

Andorinhas estão a “denegrir a imagem da justiça”

Por detrás destas acções está uma visão em que as andorinhas são metidas no mesmo saco que os pombos e são descritas, num relatório do Instituto de Gestão Financeira dos Equipamentos da Justiça, nos mesmos moldes de uma praga, enfatizando os seus efeitos nefastos para “a saúde pública”. Chega a escrever-se que elas contribuem para “denegrir a imagem da justiça”. E, assim sendo, os seus responsáveis têm recorrido à contratação de uma das mais conhecidas empresas de desinfestação do mercado, que tem instalado redes de nylon que impedem o acesso delas aos seus locais anteriores de nidificação, e espigões em metal que, visando essencialmente dissuadir os pombos de pousarem, têm sido causa de morte de juvenis de andorinhas. Que caem dos ninhos que subsistem e aparecem empalados nestes picos de aço. 

A experiência tem demonstrado que, em desespero, algumas andorinhas tentam refazer o ninho, para o qual usam lama, plantas e saliva, por cima da rede, com risco para a sua própria vida, explica ao PÚBLICO Serafim Riem, agastado com esta visão higienista de um ministério que, na sua perspectiva, deveria ter uma noção apurada do dever de protecção da natureza. Aliás, no acórdão sobre o caso de Nisa, já referido, o STJ argumentava que “o Estado Português não pode consagrar constitucionalmente o direito ao ambiente, defender uma política de ambiente, subscrever tratados internacionais que o vinculam, elaborar leis e decretos-leis de defesa da vida selvagem e depois com a sua actuação concreta negar tudo isso”. E para o Fapas, é precisamente isto que está a acontecer. E não seria necessário, acredita o secretário da direcção do desta associação, defendendo outra abordagem.  

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A andorinha de cerâmica foi criada por Raphael Bordallo Pinheiro, em 1896

A associação já testou uma solução para o problema, também no Alto Alentejo, em Marvão, concelho integrado no Parque Natural da Serra de São Mamede. Na freguesia da Beirã, que se desenvolveu nas margens, e por causa, do caminho-de-ferro, a partir de 1886, uma casa de guarda de passagem-de-nível abandonada dava abrigo a uma pequena colónia, que não incomodava ninguém, por não haver quem se incomodasse. Até ao dia em que a Junta, presidida por António Mimoso, entendeu que o espaço merecia outro destino, o de memorial aos ferroviários com os quais se funde a identidade local. Mais uma vez, à boleia de uma reabilitação, os ninhos estiveram a pontos de serem destruídos, mas a intervenção do Dr. dos Pássaros e a sensibilidade do autarca, impediram esse destino. 

O que o Fapas propôs, e foi já executado, é muito simples. Sob o beiral da casa, e uns centímetros abaixo dos ninhos, foi afixado um painel acrílico de 25 cm de profundidade, suportado por poleias, que recolhe os dejectos das andorinhas, impedindo que estes caiam na calçada ou estraguem a fachada. Fora da época de nidificação, a “prateleira” pode ser retirada para limpeza, e reposta no lugar, para a época de acasalamento seguinte. António Mimoso está satisfeito com a solução, que não é dispendiosa e, na sua perspectiva, não afecta a estética do edifício. 

Mais andorinhas que pessoas, na Beirã

Neste caso foi usado acrílico, mas o material pode ser adaptado ao tipo de fachada. Em Inglaterra, onde a Real Sociedade para a Protecção das Aves recomenda uma intervenção semelhante para melhorar o nosso convívio com os house martins, o exemplo que mostram no seu site é em madeira, material mais comum, na construção, nos países do Norte da Europa. “Nós temos muito cuidado com o património da Beirã, mas temos de preservar a natureza também. E as pessoas, aqui no Alentejo, respeitam muito as andorinhas”, afiança o autarca, de 47 anos, que coabita, orgulhosamente, com um ninho de pardal em casa e que gere uma freguesia onde há mais casais de Delichon urbicum do que habitantes, que rondam as 600 pessoas.

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Os ninhos de andorinha-dos-beirais são feitos com lama, plantas e saliva DR/Armando Caldas

“Na primavera, é vê-las, às andorinhas, aos milhares, nos cabos de electricidade”, descreve Mimoso, com deleite, notando que o estilo de vida da comunidade, ainda muito ligada ao campo, beneficia a espécie que, em contrapartida, controla os insectos, que são a base da sua alimentação. “Aqui não temos agricultura intensiva, o que também ajuda a atraí-las”, argumenta o autarca, que vai no quarto mandato e que passou a ter como vizinho, na década de 90, Serafim Riem, que tem uma propriedade na freguesia - uma unidade de turismo rural integrada numa reserva da natureza privada - que abriga várias espécies, entre elas dois casais de cegonhas. 

Castelo de Vide adere ao projecto

“Não sei se sabe, mas o Serafim, quando aqui chegou para acompanhar as obras na casa, e viu que tinha as cegonhas a acasalar num ninho na chaminé, foi dormir para um hotel para não as incomodar”, recorda outro autarca, amigo do ambientalista. António Pita, o homem que recorda esta história contada no PÚBLICO, em 1991, pelo saudoso Torcato Sepúlveda, num perfil de Riem, com o título “O Pai das Cegonhas”, preside à Câmara de Castelo de Vide, a poucos quilómetros de Marvão. Noutras vidas, foi testemunha do Fapas no processo envolvendo o Tribunal de Nisa. E só não replicou, no centro histórico da vila, a solução instalada pela associação na Beirã, porque, como todo o país, as atenções do município se concentraram, entretanto, na Covid-19. Que, ao contrário das andorinhas, não chegou ainda ao concelho, um dos poucos, no país, sem um único caso registado até domingo.

A tempo da próxima Primavera, alguns edifícios emblemáticos da vila, como a Câmara, os CTT e, muito provavelmente a Caixa Geral de Depósitos, com cuja gerência já conversou, devem passar a ostentar o apêndice arquitectónico proposto pelo Fapas. O material será o que melhor se integrar com o edificado, como se exige num centro histórico, mas António Pita garante que a intervenção, como na Beirã, não será dispendiosa. “Não sou ambientalista, mas tenho uma relação com a natureza que se vem intensificando, como se impõe cada vez mais neste tempo em que vivemos”, justifica-se o autarca. Que espera, com esta opção, convencer mais instituições, e principalmente os cidadãos do concelho, a seguir o exemplo, acabando com a destruição dos ninhos de andorinha-dos-beirais. 

A adesão de António Pita não surpreendeu Serafim Riem, que, agradecido, espera que, de Castelo de Vide, o projecto se possa alargar, a seguir, a outros concelhos da região, agregados na Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo, com os quais o autarca admite, a seguir, conversar. “O nosso território está integrado no Parque Natural da Serra de São Mamede. As nossas maiores riquezas são o património cultural mas também o ambiental”, insiste o autarca que se recorda de ver em Nisa, na casa da avó onde passou parte da infância, as andorinhas de Bordalo, fixadas à parede ao longo de uma escadaria. Por ali, nota, “dizia-se, na oralidade popular, que as andorinhas eram aves de Deus e que o seu ninho tinha de ser protegido”. E, acreditando que é inimaginável um Verão alentejano sem os voos destes pássaros de dorso negro-azulado e peito branco, é isso que o autarca de Castelo de Vide pretende fazer.