Peter Beard, um fotógrafo selvagem

Trocou o que se esperava dele por uma vida de aventura e de aventuras, entre África e Nova Iorque, fotografando elefantes e rinocerontes, mas também manequins, escritores, músicos e artistas. Estava desaparecido há semanas. “Morreu onde viveu — na natureza.”

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Peter Beard estava desaparecido há 19 dias quando o seu corpo foi encontrado no domingo, já sem vida, por um caçador e antigo bombeiro numa área cerrada da floresta de Montauk, na península de Long Island, a cerca de 200 km do coração de Nova Iorque, a sua cidade. O fotógrafo, conhecido pelas imagens intimistas de África e pela irreverente vida pessoal, tinha 82 anos e sofria de demência. Desde o final da tarde de 31 de Março, o último dia em que foi visto, que as autoridades o procuravam. 

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Peter Beard estava desaparecido há 19 dias quando o seu corpo foi encontrado no domingo, já sem vida, por um caçador e antigo bombeiro numa área cerrada da floresta de Montauk, na península de Long Island, a cerca de 200 km do coração de Nova Iorque, a sua cidade. O fotógrafo, conhecido pelas imagens intimistas de África e pela irreverente vida pessoal, tinha 82 anos e sofria de demência. Desde o final da tarde de 31 de Março, o último dia em que foi visto, que as autoridades o procuravam. 

Sempre apresentado como um dos mais singulares e aventureiros fotógrafos da vida selvagem, Peter Beard passou mais de 50 anos a documentar o continente africano, que o marcou desde as primeiras viagens, em 1955 e 1960. As imagens que nele fez eram muitas vezes combinadas com textos escritos num registo diarístico, uma prática que começou a desenvolver ainda na adolescência e que manteve quase até ao fim. 

Nascido em 1938 em Nova Iorque, numa família com fortuna feita no caminho-de-ferro e no tabaco, Peter Beard estava destinado a ser um príncipe da alta-roda americana, com uma vida mais ou menos convencional.

Começou a fotografar logo na década de 1940, com uma Voigtländer que lhe ofereceu a avó, uma figura decisiva no seu gosto pela natureza. As imagens que fazia eram, depois, associadas a textos, recortes de jornais, bilhetes de cinema e de transportes, pedras e penas, folhas e flores, nos seus diários. Mais tarde, lembra o obituário agora publicado no jornal The New York Times, essa prática da colagem deu origem a obras de grande formato, onde o artista viria a misturar outros materiais, como terra e sangue, o de animais ou mesmo o seu.

Com um perfil de galã de cinema e uma carteira recheada, Peter Beard chegou à Universidade de Yale em 1957 para estudar Medicina mas acabou por sair de lá em 1961 licenciado em História de Arte, depois de ter tido entre os seus professores teóricos e pintores como o alemão Josef Albers, pode ler-se na cronologia do seu site oficial

África sempre

Em 1955, com apenas 17 anos, Peter Beard fizera a sua primeira viagem a África com o bisneto de Charles Darwin, Quentin Keynes, e passara o Verão a fotografar intensamente, sobretudo fauna, na África do Sul, em Madagáscar e no Quénia, uma experiência que o marcou para sempre. Em 1964-65 consolidou em definitivo o seu amor pelo continente quando passou meses a trabalhar no Parque Nacional de Tsavo, um complexo de áreas protegidas que abrange territórios no Quénia e na Tanzânia. Foi lá que assistiu à morte de dezenas de milhares de animais devido à destruição do seu habitat e ao aumento descontrolado do povoamento. Mais de 35 mil elefantes e cinco mil rinocerontes, escreveria mais tarde naquele que viria a ser o seu livro mais popular, The End of the Game (1965), uma obra com um prefácio do escritor Paul Theroux que lhe valeu a sua reputação de grande fotógrafo da vida selvagem.

Foi nesse período que Beard resolveu comprar uma quinta a sudoeste de Nairobi, Hog Ranch, colada à que pertencera a Karen Blixen, a escritora dinamarquesa que conheceu e fotografou, autora de África Minha, livro que o influenciou profundamente. 

Com uma casa em Manhattan e outra em Montauk, o fotógrafo passava grandes temporadas no Quénia. E mesmo já depois dos 70 anos, era conhecido por ficar até de madrugada nas discotecas da capital, lembra o New York Times, acrescentando que a sua vida privada, cheia de “drama, ousadia, perigo e romance”, sempre foi, na realidade, pública. O que não é de estranhar para quem teve na sua lista de amigos Jacqueline Kennedy Onassis, Mick e Bianca Jagger, Andy Warhol, Truman Capote, David Bowie, Grace Jones ou Francis Bacon, que lhe pintou o retrato mais do que uma vez. 

Se não tivesse existido, escreve ainda o diário americano, Peter Beard poderia ter nascido de uma colaboração entre os escritores Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e Paul Bowles.

“O Peter redefiniu o que significa ser aberto: aberto a novas ideias, novos encontros, novas pessoas, novas maneiras de viver e de ser. Sempre insaciavelmente curioso, seguiu as suas paixões sem limitações e apreendeu a realidade através de uma lente única”, pode ler-se num comunicado da família, divulgado esta segunda-feira por vários jornais norte-americanos, um texto breve em que se enaltece a sua paixão pela natureza, pela vida. “O Peter era um homem extraordinário que teve uma vida extraordinária. (…) Era um explorador intrépido, infalivelmente generoso, carismático e exigente.” Alguém, continua a família, que há já muitas décadas começou a fazer eco dos danos ambientais causados pelo homem. “O lado selvagem desapareceu e com ele muito mais do que podemos avaliar ou prever. E nós vamos sofrer com isso”, disse o artista à revista Vanity Fair em 1996, agora recuperada pela People.

O último dos aventureiros

Para além de documentar a vida selvagem, Beard retratou muitos dos seus amigos famosos com que dançava no Studio 54 e fez fotografia de moda para revistas como a Elle e a Vogue, tendo na sua longa lista de relações afectivas várias top models, incluindo Cheryl Tiegs, com quem se viria a casar. Foi ele, aliás, que “descobriu” um dos rostos mais conhecidos das passerelles da década de 1980, Iman, quando passeava pelas ruas de Nairobi de câmara na mão. 

“A última coisa que resta na natureza é a beleza das mulheres , por isso sinto-me muito feliz por poder fotografá-la”, disse no final dos anos 1990 ao britânico The Observer, o jornal que o definia assim: “Peter Beard — cavalheiro, socialite, artista, fotógrafo, Lothario [por referência a um personagem de Cervantes que era um grande sedutor, embora pouco escrupuloso], profeta, playboy e fã de drogas recreativas — é o último dos aventureiros.”

Em 1996, enquanto fotografava em África, perto da fronteira entre o Quénia e a Tanzânia, um elefante partiu-lhe a perna, várias costelas e a bacia em meia dúzia de sítios, deixando-o com sérios danos nos nervos ópticos. Os médicos que conseguiram reanimá-lo chegaram a dizer-lhe que muito provavelmente não voltaria e ver nem a andar. Enganaram-se. Várias cirurgias depois, Beard voltaria a trabalhar e a festejar com os amigos, publicando e fazendo exposições. 

Peter Beard mostrou o seu trabalho a solo em galerias, no Centro de Fotografia de Manhattan e no Centro Nacional de Fotografia, em Paris, e em várias edições. Nos últimos anos, a doença manteve-o afastado da vida pública.

A casa onde o fotógrafo vivia com Nejma Khanum, a mulher com quem se casou em 1986 e mãe da sua única filha, Zara, faz parte de um complexo de propriedades com vista de mar, colado ao Camp Hero State Park, a área protegida onde o seu corpo foi encontrado. 

Peter Beard, que sempre se sentiu atraído pelo perigo, pela transgressão dos limites, tinha o hábito de sair sem carteira e sem telefone. Talvez por isso Scott Pitches, que participou nas buscas, tenha dito ao New York Times: “Tinha esperança de que fosse uma das suas escapadelas para uma última viagem à cidade.” Despedindo-se do fotógrafo, a família concluía, assim, o comunicado em que deu conta da sua morte: “[O Peter] morreu onde viveu — na natureza.”