Portugal vai analisar águas residuais para detectar SARS-CoV-2

Projecto analisará águas residuais à entrada e à saída de estações de tratamentos de águas de centros urbanos. Objectivo é criar um sistema de alerta precoce da presença do SARS-CoV-2.

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Nelson Garrido

Nos Países Baixos conseguiu-se detectar a presença do coronavírus SARS-CoV-2 nas águas residuais no país. Este resultado abriu um leque de oportunidades na investigação do vírus nas águas residuais: além de mostrar que se pode identificar o vírus nos esgotos, espera-se que sirva de alerta de um novo surto da doença. Vários países já estão a investigar este tema. Também em Portugal se formou um consórcio que vai analisar águas residuais de centros urbanos para detectar o vírus. O projecto é coordenado pelas Águas de Portugal e arrancou formalmente nesta segunda-feira. 

As águas usadas que vão para as estações de tratamento de águas residuais (ETAR) são vulgarmente designadas por esgotos. A sua análise pode ser uma forma de se detectar agentes patogénicos que são excretados na urina ou nas fezes. Há agora cientistas a tentar aplicar esta análise ao SARS-CoV-2.

No final de Março, cientistas holandeses anunciaram que tinham detectado material genético do SARS-CoV-2 em várias estações de tratamento do país. “Uma estação de tratamento pode recolher águas residuais de mais de um milhão de pessoas”, disse ao site da revista Nature Gertjan Medema, microbiólogo do Instituto de Investigação da Água (KWR), nos Países Baixos, e membro da equipa que fez essa detecção. “A monitorização do caudal influente [nas ETAR] pode dar-nos melhores estimativas de quão difundindo está o coronavírus, porque a vigilância às águas residuais pode detectá-lo naqueles que não foram testados e que apenas têm sintomas leves ou não têm mesmo sintomas.”

O método usado para detectar o vírus nas águas residuais chama-se RT-PCR (transcrição reversa da reacção em cadeia de polimerase), que também é usado para detectar o coronavírus nas pessoas. Neste método, procuram-se certos fragmentos do ARN (o material genético) do vírus.

Entretanto, já foi detectada a presença do vírus em esgotos nos Estados Unidos, na Suécia e noutros países. Há um grande entusiasmo na comunidade científica sobre este assunto e vários países estão a mobilizar-se para analisar as águas residuais como forma de vir a estimar o número de infecções na comunidade. Por exemplo, a equipa do KWR pretende monitorizar a presença do SARS-CoV-2 em águas residuais recebidas em grandes estações de tratamento nos Países Baixos. A ideia é estudar as tendências da propagação da pandemia no país e ter um sistema de alerta para futuros surtos.

Antecipar um novo surto

Em Portugal, o projecto criado chama-se Covidetect e é composto pelo Instituto Superior Técnico (IST), a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, a Águas do Tejo Atlântico, a Direcção-Geral da Saúde, a EPAL, Águas do Norte e a Simdouro. Através da análise de águas residuais em ETAR pretende-se detectar, quantificar, caracterizar e modelar o vírus.

Para isso, irá investigar-se as águas residuais à entrada e saída de ETAR de centros urbanos. “Também queremos perceber se há eliminação do vírus caso ele esteja presente à entrada da ETAR e se é removido com tratamentos que lá existem”, explica Sílvia Monteiro, investigadora do IST que participa neste projecto ao nível do desenvolvimento das metodologias para a detecção e quantificação do SARS-CoV-2 nas águas residuais​. A detecção do vírus será feita através de RT-PCR num laboratório do IST. 

Prevê-se que o projecto tenha uma primeira fase de desenvolvimento e validação do método de cerca de um mês, nota o Ministério do Ambiente e da Acção Climática em comunicado. Depois, seguir-se-á a monitorização de cinco ETAR nos seis meses seguintes, tal como a modelação ecoepidemiológica das cargas virais e sequenciação dos genomas de SARS-CoV-2 nas águas residuais.

A longo prazo, devidamente contextualizado com outros dados e se tal for possível, este projecto poderá contribuir para estimar o número de infectados, incluindo os pré-sintomáticos e os assintomáticos, assinala Ricardo Santos, investigador do IST e também participante no projecto​. E não só: “Para além da detecção em si, pode ser um early warning system [um sistema de aviso prévio] de possíveis ressurgimentos deste surto, bem como a possibilidade de mimetizar esta detecção para outros surtos ou outras doenças”, esclarece. No comunicado do Ministério do Ambiente realça-se mesmo que o objectivo do projecto é “criar um sistema de alerta precoce da presença do SARS-CoV-2”, contribuindo assim para melhorar a resposta em eventuais novos surtos da doença.

“A ideia é fazer a detecção do SARS-CoV-2 nas águas residuais não só para se verificar quando há um decréscimo no número de infectados e que o coronavírus está a sair de circulação, mas, havendo um novo pico, começar logo a perceber-se isso nas águas residuais”, resume Sílvia Monteiro. “Fala-se de que [o surto] poderá voltar no Inverno e as águas residuais poderão ser um indicador de que o coronavírus está novamente a circular na população.”

Esta investigação já tinha sido anunciada a 9 de Abril pelo ministro do Ambiente e da Acção Climática, João Pedro Matos Fernandes, que garantia que o ministério daria “toda a prioridade” a este projecto. “Esta pode ser mesmo uma forma de prevenir futuras pandemias”, dizia num vídeo partilhado no Twitter. A partir do momento em que se detectar a presença deste vírus ou de vírus parecidos nos esgotos quando estão a ser tratados, referia ainda Matos Fernandes, essa será uma forma alertarmos muito depressa as autoridades de saúde e reduzirmos o impacto de pandemias como estas que venham a acontecer no futuro.

E a transmissão?

Célia Manaia nota que o grande interesse deste tipo de vigilância é a prevenção. “Antes de começar a haver sintomas na comunidade pode já haver um indício nos esgotos”, nota a investigadora na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, que não integra este projecto, mas foi a responsável pelo primeiro estudo europeu de vigilância de resistência a antibióticos em ETAR. Contudo, refere que, no caso do SARS-CoV-2, não sabemos qual é a proporção de vírus que chega a um esgoto e se teremos amostras representativas do surto na população. Tanto Ricardo Santos como Sílvia Monteiro referem que ainda é prematuro dizer que é representativo da comunidade.

No fundo, os esgotos podem ser um espelho real do que se passa ou dão uma imagem difusa? “Imaginemos que o que aparece no esgoto corresponde a 10% daquilo que efectivamente está a ser produzido na comunidade”, exemplifica a investigadora. “Pode ser muito pouco para ter níveis de detecção suficientes para se fazer uma vigilância epidemiológica.” Ou seja, ainda não é certo que possa servir de espelho e os investigadores têm de garantir que estão a analisar uma amostra representativa do que está a ser excretado pela população.

Mesmo assim, Célia Manaia diz que poderá ser importante na antecipação de um novo surto: “Antes de começar a haver muitos casos diagnosticados, pode já começar a haver uma percepção [através dos esgotos] de que a prevalência do vírus está a aumentar na comunidade. Aí, pode começar a haver medidas de confinamento. Isto funcionaria mais como uma acção preventiva do que propriamente uma acção de remedeio.”

Outra das questões que se colocam é: será que o coronavírus é transmissível nas águas residuais? “A partir do momento em que se encontram partículas virais nos esgotos, claro que existe essa possibilidade. Mas, em termos de transmissão, se existisse algum risco – que acho que será muito diminuto –, seria sobretudo para as pessoas que operam as estações de tratamento de águas residuais e esgotos”, responde Célia Manaia, salientando que a transmissão para o ambiente será “muito pouco provável” a não ser que não exista saneamento.

Também Hans Ruijgers, responsável pela comunicação do KWR, disse ao PÚBLICO que não há provas de que a água seja um veículo de transmissão do SARS-CoV-2. “Fragmentos de ARN do vírus foram detectados nas águas residuais, mas é pouco provável que sejam infecciosos”, afirmou. Quanto aos profissionais desses locais, refere que têm equipamento de protecção e que a tanto a Organização Mundial da Saúde como os Centros para a Prevenção e Controlo das Doenças dos Estados Unidos indicaram que as medidas normais de protecção e higiene são adequadas.