Factos para compreender a epidemia da covid-19. O que têm de específico as doenças infeciosas?
Deve a dinâmica da infeção ser comparada entre países, usando como referência o denominador milhão de habitantes? A resposta é: não!
Imaginemos dois países. Um com dez milhões de habitantes e outro com 200 milhões, sem casos de covid-19. Imaginemos que, em ambos os países, entram cinco pessoas infetadas pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, e que cada uma delas transmite a infeção a outras cinco, levando a 25 novos casos. Imaginemos, neste exemplo, que isso acontecia ao fim de uma semana, o que se chama o tempo de geração, e que por isso o primeiro país, no final dessa semana, teria três casos por milhão de habitantes, enquanto o segundo teria 0,15 por milhão de habitantes.
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Imaginemos dois países. Um com dez milhões de habitantes e outro com 200 milhões, sem casos de covid-19. Imaginemos que, em ambos os países, entram cinco pessoas infetadas pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, e que cada uma delas transmite a infeção a outras cinco, levando a 25 novos casos. Imaginemos, neste exemplo, que isso acontecia ao fim de uma semana, o que se chama o tempo de geração, e que por isso o primeiro país, no final dessa semana, teria três casos por milhão de habitantes, enquanto o segundo teria 0,15 por milhão de habitantes.
Será que nestes países, como noutros, os valores em casos por milhão de habitantes informam sobre a dinâmica da infeção e o seu efeito nos cuidados de saúde? Ou seja, deve a dinâmica da infeção ser comparada entre países, usando como referência o denominador milhão de habitantes? Vamos, por isso, responder a essa pergunta para a qual a utilização adequada dos métodos epidemiológicos é fundamental. E a resposta é: não!
Embora seja tecnicamente complexo, é possível fazer-se compreender com alguma álgebra simplificada. Assim, vejamos. A resposta a esta pergunta exige que se tenham em conta dois conceitos fundamentais da epidemiologia das doenças infeciosas: o número básico de reprodução – R0 – e o modelo epidémico, o qual considera as populações como colocadas em diferentes compartimentos em cada momento e ao longo do tempo. Esses compartimentos, na sua apresentação mais simples, podem ser vistos como a divisão da população em três grupos: os Suscetíveis, os Infetados (compreendendo os que estão infeciosos) e os Recuperados (designação sob a qual se englobam habitualmente os que curaram e os que faleceram, mas deve também incluir aqueles que, estando infeciosos, sob medidas eficazes de isolamento, na prática já não transmitem a infeção). Este modelo é conhecido como modelo SIR.
Quando estudamos a infeção recorrendo a um modelo SIR assumimos que os indivíduos se movem ao longo do tempo do estado de suscetíveis para o de infetados e de infetados para recuperados. Como tal, para existir uma epidemia, é necessário que a velocidade de transição de suscetíveis para infetados (entradas) seja superior à velocidade de transição para recuperados (saídas). A velocidade de transição de suscetíveis para infetados depende da probabilidade de infetar (π) em cada contacto com alguém infecioso; da média de contactos (c); da proporção de indivíduos infetados (i=I/N); e da proporção de indivíduos suscetíveis (s=S/N), sendo que N representa a população total, S o número dos que estão suscetíveis à infeção e I o conjunto dos que estão infetados. A velocidade de transição do estado de infetado para recuperado depende do inverso do tempo de duração da infeção (ν = 1⁄d) e da proporção de infetados (i). Por conseguinte, para comparar países, temos que começar por calcular razões de velocidades de transição de suscetíveis para infetados, sobre infetados para suscetíveis; quanto maior a razão num país maior será a dimensão da epidemia, sendo que, se a razão for superior a 1, a incidência da infeção está a aumentar, enquanto que se for inferior a 1 estará a diminuir.
Olhando para a fórmula, pode parecer que para comparar países teríamos que ter em conta a proporção de suscetíveis na população (s), a qual depende do N (ou seja, do tamanho da população). No entanto, essa é uma dedução errada. No início de uma epidemia, em especial numa doença emergente para a qual não há memória de relação com o agente, a proporção de suscetíveis “s” é próximo de 1 (ou seja, na prática, todos estão suscetíveis) e assim continua durante algum tempo. Veja-se o caso da Itália, um país muito afetado pela covid-19, em que a proporção de suscetíveis neste momento continua a rondar os 95%, ou seja:
A este último indicador chama-se então número básico de reprodução da infeção, e representa a quantos indivíduos suscetíveis, em média, um indivíduo infecioso transmite a infeção. Como se vê, este é o indicador apropriado para fazer comparação entre países. No exemplo com que iniciamos este texto, o R0 era igual a cinco em ambos os países mostrando que a situação da infeção era idêntica, e não, como poderia sugerir a proporção de casos por milhão de habitantes, diferente nos dois países.
Este indicador pode variar (em geral, é o que acontece em resposta às intervenções) com o decorrer da epidemia, pois podemos diminuir o número médio de contactos, nomeadamente com o afastamento físico, e a probabilidade de infeção com medidas preventivas (exemplo: lavar as mãos, usar equipamentos de proteção individual, limpar cuidadosamente as superfícies), para além de isolar rapidamente os indivíduos com infeção. Ao indicador de que então passamos a dispor, chamamos R efetivo, e calcula-se ao longo do tempo recorrendo a parâmetros semelhantes:
Mas claro que os indicadores, quaisquer que sejam, dependem de estimar corretamente o número de pessoas infetadas num país. Essa capacidade varia de país para país, e varia ao longo do tempo dentro de um país. Um país com uma grande capacidade de testar a população poderá estar a detetar mais casos que um país com menor capacidade, e mais importante é considerar se essa capacidade, ou até a política seguida em relação à indicação para realizar os testes, variou ao longo do tempo. Podemos estar a duplicar casos, não porque aumentou a incidência, mas sim porque estamos a detetar casos assintomáticos que, numa fase inicial, não havia a preocupação ou a possibilidade de identificar. Acresce ainda, para compreender a complexidade destes indicadores, que o desempenho dos testes na sua capacidade de identificar infeções varia muito com o tipo de teste utilizado e a capacidade técnica de quem o usa, fazendo variar a proporção de positivos verdadeiros e, assim, podendo enviesar as comparações. No caso português, a razão entre testes positivos sobre indivíduos suspeitos de infeção, a razão entre número de internamentos e indivíduos positivos, e, finalmente, a razão entre doentes internados em unidades de cuidados intensivos e os internamentos totais tem vindo a diminuir ao longo tempo, o que indica que cada vez estaremos a detetar mais casos assintomáticos, que não foram identificados na primeira fase, bem como casos clinicamente mais ligeiros, o que revela esse esforço de diagnóstico da infeção.
Sendo Portugal um dos países com taxas mais altas de testes para diagnosticar a covid-19, o número de casos identificados é seguramente superior ao de outro qualquer país que não tenha os recursos necessários ou esteja a fazer um menor esforço nesse sentido, mesmo que as condições de infeção sejam semelhantes. No entanto, pode também, em relação ao teste, não importar tanto o número dos que são executados por milhão de habitantes, mas sim que estes sejam dirigidos às populações que deles verdadeiramente necessitam.
E, então, que sentido pode fazer recorrer a comparações de indicadores de frequência de uma doença, utilizando o tal denominador milhão de habitantes? Se a covid-19, depois desta fase pandémica, se vier a comportar como uma infeção endémica, então poderá ser útil considerar-se nas comparações internacionais o recurso à frequência por milhão de habitantes (mais corretamente até, em pessoas-tempo, e não em número de habitantes). Mas neste novo caso, o mais elementar que se exigirá ao comparar populações distintas é a adequada padronização para caraterísticas diferentes e relevantes entre populações, por exemplo, a composição etária e por sexos, como se faz para comparar a morbilidade ou a mortalidade por doenças cardiovasculares ou tuberculose.
Autores
Milton Severo, Ana Cristina Santos, Ana Isabel Ribeiro, Artur Rocha, Carla Lopes, Daniela Correia, Elisabete Ramos, Gonçalo Gonçalves, Joana Araújo, Makram Talih, Margarida Tavares, Nuno Lunet, Paula Meireles, Raquel Lucas, Rui Camacho, Sílvia Fraga, Sofia Correia, Susana Silva, Teresa Leão e Henrique Barros
Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP)
Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC)
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico