A escola, os exames e a pandemia

Nesta lógica de experimentação social a que a pandemia nos obrigou, seria interessante o Governo ter a coragem de experimentar este ano novas formas de acesso ao ensino superior.

A situação atual de confinamento coloca a todos uma série de desafios. Alunos em casa, vida social inexistente, cancelamentos de tudo o que é evento publico, saúde suspensa para tudo o que não é covid-19, falta de meios nos hospitais e laboratórios, mortes, medo... As consequências sociais, psicológicas e económicas de tudo isto ainda vão dar muitas teses de doutoramento e análises profundas.

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A situação atual de confinamento coloca a todos uma série de desafios. Alunos em casa, vida social inexistente, cancelamentos de tudo o que é evento publico, saúde suspensa para tudo o que não é covid-19, falta de meios nos hospitais e laboratórios, mortes, medo... As consequências sociais, psicológicas e económicas de tudo isto ainda vão dar muitas teses de doutoramento e análises profundas.

No que diz respeito à escola e ao ensino, julgo que esta pandemia trouxe ao de cima uma das fragilidades do sistema de ensino que já tive oportunidade de referir noutros artigos: o ensino centrado nas avaliações e em concreto nos exames (no secundário). Tudo acontece para e em função dos mesmos. As medidas que o Governo coloca em cima da mesa para resolver o problema do regresso às aulas fazem exatamente isso mesmo, focar nos exames e nos alunos que os vão fazer.

Isto é, os critérios seguidos pelo ministério não parecem ser critérios para manter e assegurar a saúde publica, mas sim critérios que têm que ver com a importância dos exames no secundário – em concreto para o acesso ao ensino superior. Ora, não me parece que os alunos do secundário devam ser a prioridade. Primeiro por razões de saúde pública: os jovens a partir dos 15, 16 anos, se ficarem doentes, revelam sintomas semelhantes a um adulto, e a covid-19 nestas idades pode ser problemática para alunos e para pais que serão no geral mais velhos que os pais dos miúdos da pré e básico. Nas crianças mais jovens, o perigo da doença para os próprios é menor e os seus pais são no geral mais jovens. Obviamente há que pensar em medidas para proteger os professores e funcionários, mas as medidas de afastamento, máscaras e higienização poderão ser suficientes para que as coisas corram bem (embora aqui seja necessária a opinião de pessoas mais esclarecidas do que eu) e estes alunos possam regressar às escolas (existem vários exemplos pelo mundo de alunos nestas idades a frequentar escolas, e essas boas práticas podem ser seguidas).

No argumento da saúde pública há ainda a relevar o perigo para a saúde mental de pais e crianças presas em casa por períodos longos (basta imaginar uma família com dois ou três filhos em idades inferiores a dez anos, fechados num apartamento, com um ou dois pais em teletrabalho, para perceber do que se está a falar. Se a mesma família tiver filhos com mais de 15 ou 16 anos as coisas, são em princípio, mais fáceis, porque os jovens requerem e querem menos atenção dos pais).

Segundo, razões de autonomia no estudo. As crianças mais pequenas não têm autonomia para estudar por si próprias, precisam muito mais do professor para aprender do que os alunos mais velhos, e os pais só com dificuldade conseguirão colocar a criança horas em frente à televisão e/ou computador a aprender (de notar que muitos pais em teletrabalho não poderão estar a controlar os filhos na sua aprendizagem). Já um jovem de 15, 16, 17 ou 18 anos tem a obrigação de se desenrascar. Se não aprendeu a estudar sozinho, tem agora uma excelente oportunidade de o fazer! Essa é na verdade uma das competências que lhes será mais útil no futuro! Obviamente que aqui o sozinho é relativo, porque os professores estão disponíveis para apoio ao estudo e à aprendizagem, mas o esforço de aprendizagem tem que ser do aluno.

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As escolas fecharam há um mês e já só poderão reabrir para os alunos do 11.º e 12.º ano MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

É interessante como esta situação de pandemia coloca de repente em cima da mesa a questão do ensino vs. aprendizagem. Há em Portugal muito a ideia de que o professor tem uma dose de responsabilidade muito grande pelo sucesso/insucesso dos alunos. São os próprios que o afirmam. Num estudo da iniciativa Escola Amiga da Criança, iniciativa conjunta da LeYa Educação, Confap e do psicólogo Eduardo Sá, em que a Católica Porto Business School colaborou, um dos resultados apontava para os professores se considerarem os principais responsáveis pelos resultados dos alunos, ligeiramente acima dos próprios alunos (a amostra de professores incluía mais de 3000 professores de todos os ciclos espalhados pelo país e é uma amostra representativa da população). O professor assume assim para si próprio um grande grau de responsabilidade pela aprendizagem/resultados dos alunos. Contudo, o ensino à distância inverte toda esta lógica. Nas últimas semanas dei aulas a alunos que não via, que não fazia ideia se estavam atentos ao que eu estava a dizer, nem se faziam as tarefas que eu lhes mandava fazer. Pura e simplesmente não controlava. Tenho a certeza de que todo o aluno que quis aprender na minha aula online, aprendeu, mas todo aquele que não quis, não aprendeu nada.

Como disse Yuval Noah Harari, num artigo recente no Financial Times, vivemos uma impensável experimentação social, onde estamos a testar o que acontece quando todas as aulas acontecem à distância. Sociólogos e psicólogos estarão em melhores condições do que eu para avaliar as devidas consequências – mas uma parece-me evidente. O centro da aprendizagem está agora no sítio certo: no aluno!

Compreendo as preocupações do ministério com os exames, porque no nosso país eles são a única forma de acesso ao ensino superior. Mas a verdade é que também sabemos que várias injustiças advêm desse facto e sabemos por vários estudos, alguns em que eu própria estive envolvida, que as notas dos exames, sendo um dos principais preditores de sucesso no superior, explicam na verdade apenas uma pequena percentagem desse mesmo sucesso (sendo que essa percentagem varia por curso e cursos há em que notas de entrada não explicam o sucesso no superior).

Nesta lógica de experimentação social a que a pandemia nos obrigou, seria interessante o Governo ter a coragem de experimentar este ano novas formas de acesso ao ensino superior. Eu sou defensora dos exames. Entendo que eles são ótimos instrumentos de controle do estado da educação num país, mas não os defendo como único instrumento no acesso, onde me parece que liberdade deveria ser dada a cada instituição do ensino superior para definir os critérios de recrutamento para os seus cursos. Há vários modelos de acesso onde podemos procurar inspiração e países que já cancelaram a realização de exames este ano letivo (e.g. França e Reino Unido). Embora na maior parte dos países da Europa existam exames nacionais (relativos a disciplinas em concreto ou testes de aptidão mais genéricos (como é o caso na Suécia), na maior parte dos casos existe também autonomia das universidades a definir os critérios de entrada, que podem incluir notas em exames em maior ou menor grau, podem exigir testes específicos para determinados cursos, ou podem passar até por entrevistas, como acontece no Reino Unido. A crescente mobilidade internacional de estudantes dentro da Europa (que não sabemos se se vai manter) tinha já levantado discussão em torno dos requisitos de acesso baseados em exames nacionais, pois nesses casos os alunos estrangeiros têm que ter formas de acesso diferenciadas, o que pode contribuir para a desigualdade no acesso. Assim, esta é sem dúvida uma oportunidade para testar formas de acesso não baseadas em exames nacionais.

Compreendo também as preocupações com as desigualdades sociais. Os alunos das privadas, por exemplo, poderão estar mais favorecidos na preparação para exames porque nas privadas as aulas online estão potencialmente a funcionar melhor. Mas a questão da motivação para a aprendizagem é exatamente a mesma, e o aluno da privada também só aprende se quiser aprender. Além disso, a desigualdade público/privado sempre existiu e não me parece que seja o momento de nos preocuparmos com isso – até porque são apenas 21% os alunos que estão no ensino secundário privado em Portugal (Pordata, dados de 2018). Parece-me sim preocupante que os alunos mais carenciados não tenham acesso a meios para comunicar online com os professores, e compreendo que nesse caso as aulas à distância cavem mais o fosso socioeconómico entre alunos. Mas, nesse caso, penso que o Governo, a sociedade civil e os alunos podem encontrar formas de entreajuda, que já se vão vendo. Acima de tudo, vivemos tempos em que temos que ser criativos, tempos em que temos que pensar mais no coletivo do que no individual, e tempos para sermos solidários!

Na verdade, penso que temos este ano, pela primeira vez, uma oportunidade de testar um acesso diferente ao ensino superior. Um acesso em que as dificuldades de estudo e de aprendizagem são partilhadas por todos os alunos, poucos estarão numa situação favorecida de ter tido explicações e apoio ao estudo, e todos os alunos que se submetam a exame tiveram que fazer um grande esforço de estudo autónomo, de se automotivarem e de se entreajudarem. Os resultados que daqui saírem serão talvez mais justos, mas isso só a posteriori poderemos investigar.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico