De Pandora a Gaia passando por borboletas a baterem as asas

O Homem, se não mudar o seu atual modelo de desenvolvimento, irracional e destrutivo, irá provocar alterações climáticas que tornarão a atual ameaça viral uma “brincadeira de crianças”.

Nos mitos – histórias com origem nas antigas culturas que tentam dar uma explicação para criação do universo, do mundo, da natureza e da humanidade – continuamos a encontrar analogias com o que se vai passando no mundo. Vem isto a propósito do mito de Pandora e da atual pandemia covid-19.

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Nos mitos – histórias com origem nas antigas culturas que tentam dar uma explicação para criação do universo, do mundo, da natureza e da humanidade – continuamos a encontrar analogias com o que se vai passando no mundo. Vem isto a propósito do mito de Pandora e da atual pandemia covid-19.

Relembrando a mitologia grega, Zeus, o deus dos deuses, criou a primeira mulher, a bela Pandora. Como presente de casamento Zeus ofereceu-lhe um jarro, com o aviso de que ela estava proibida de abrir (mais tarde, no século XV, o “jarro” transformar-se-ia em “caixa” devido a um erro de tradução de Erasmo, forma que prevaleceu). Pandora não conseguindo dominar a sua curiosidade abriu a caixa e dela saíram todos os males do mundo: a morte, a peste, a doença, a guerra, a fome, a velhice e tantos outros. Assustada, fechou-a apressadamente, e dentro dela apenas restou a esperança.

Em novembro de 2019, alguém na China, na cidade de Wuhan, abriu uma vez mais a tampa da caixa de Pandora, libertando um temível mal, o vírus SARS-CoV-2. Este vírus, como sabemos, teve a capacidade de em quatro meses espalhar-se por todo o planeta, afetando 212 países. Apenas na Antártida não foram registados casos da covid-19.

Esta é a quinta pandemia que acontece no último século, todas elas de origem viral, e em todas elas cumpriram-se obrigatoriamente duas etapas: a primeira, a da transposição da espécie (capacidade de um vírus característico de uma determinada espécie adquirir o poder de infetar outra, neste caso a espécie humana); a segunda, a da aquisição da capacidade do vírus poder transmitir-se de pessoa a pessoa, permitindo a sua disseminação que, no caso do SARS-CoV-2 impressiona pela sua facilidade e dimensão.

Desta vez a tampa da caixa de Pandora foi aberta num mercado de animais vivos. Acontece que estes mercados, para além das suas péssimas condições de higiene, aglomeram diferentes espécies animais – alguns delas selvagens, por vezes até protegidas – que ao misturarem os respetivos fluidos orgânicos, promovem a promiscuidade dos respectivos microbiomas. E, obviamente, não podemos esquecer a presença do Homem neste processo. O resultado desta promiscuidade pode ser perigoso, como, aliás, já sabíamos desde 2002 com a epidemia do SARS, a Síndroma Respiratória Aguda Severa. Esse vírus, mais mortífero que o atual, mas com muito menor capacidade de transmissão, em oito meses percorreu 26 países, infetou 8098 pessoas das quais 794 faleceram - uma impressionante taxa de letalidade de 9,8%.

Também o sabiam as autoridades chineses que a seguir ao SARS encerraram este tipo de mercados, anulando, infelizmente, esta decisão pouco tempo depois. Valores culturais, demográficos e, sobretudo, económicos, ligados à medicina tradicional chinesa e à gastronomia local falaram mais alto.

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Este vírus que presentemente nos afeta é uma ameaça global, mas convém não esquecer que “andam por aí mais ameaças globais” REUTERS/Ueslei Marcelino

No mercado de Wuhan um coronavírus de um qualquer animal (morcego? – o seu reservatório natural), com ou sem passagem por um outro qualquer animal (reservatório secundário –​ pangolim?), sofreu uma qualquer mutação, que lhe permitiu não só infetar um humano (o paciente zero), como ter a capacidade de se transmitir entre elementos da nossa espécie. Esse animal e este paciente zero deram origem à maior pandemia do último século. Naquele dia, naquele momento, apesar de ninguém ainda o saber, tinha-se iniciado um “efeito borboleta”.

O “efeito borboleta” teorizado em 1963 pelo cientista Eduard Lorenz, foi integrado na cultura popular como “a capacidade que o bater das asas de uma borboleta tem, em poder originar um furacão, tempos depois, no extremo oposto do planeta”. Este efeito é um dos pilares da teoria do caos. Esta teoria, que estuda sistemas e eventos complexos, dinâmicos, instáveis e imprevisíveis, em que as respostas finais são fortemente influenciadas por pequenas variações das circunstâncias iniciais, sendo mais adaptada à meteorologia e à economia, tem aqui um exemplo perfeito da sua aplicação à biologia. Algo que se passou no mercado de animais vivos de Wuhan, provocou uma resposta global a nível planetário. Uma borboleta bateu as asas em Wuhan e provocou um furacão em todo o planeta, que já atingiu 2 milhões de pessoas, matou mais de 120 mil, colocou milhões de pessoas em isolamento social, interrompeu a atividade laboral e paralisou a economia.

Do passado vêem-nos abundantes exemplos de episódios, em que, ao não respeitar a natureza o Homem pode originar graves problemas. Apenas a título de exemplo, o episódio da “doença das vacas loucas”, a BSE. Esta doença infecciosa e transmissível, provocada por uma partícula composta por proteínas com forma aberrante – o prião – foi provocada pelo Homem, quando passou a alimentar o gado bovino com rações contendo farinha feita a partir das carcaças de outros bovinos, estropiados, doentes, em processo de agonia ou já mortos – a chamada “farinha de carne e ossos"; ou seja, nós humanos, transformamos bovinos - animais estritamente herbívoros – em animais carnívoros comedores de animais da mesma espécie.

Para além do formidável impacto económico que este surto provocou – abate de todos os animais infetados e respectivos conviventes e proibição da exportação de carne de bovino a todos os países com casos reportados – a infeção acabou também por ser transmissível aos humanos através da ingestão das vísceras e da carne de animais infetados, provocando uma doença neurodegenerativa evolutiva e rapidamente mortal, a Doença de Creutzfeldt Jacob.

Esta doença já tinha sido reportada nas décadas de 50-60 do passado século, entre os papuas da Nova Guiné, com o nome de Kuru, em que o prião era transmitido na sequência de atos de antropofagia – a ingestão cerimonial de cérebros de pessoas falecidas, praticada pelos seus familiares aquando da respetiva cerimónia fúnebre.

Este vírus que presentemente nos afeta é uma ameaça global. Se não usufruíssemos dos avanços da Medicina, o SARS-CoV-2 comportar-se-ia como um regulador demográfico, tal como aconteceu no passado com os vírus da varíola ou da gripe espanhola. Mas convém não esquecer que “andam por aí mais ameaças globais”, e não estou apenas a falar de outros vírus perigosos, que também os há. Estou a falar das alterações climáticas.

No seu posicionamento desequilibrado e negligente relativamente à natureza, o Homem, se não mudar o seu atual modelo de desenvolvimento, irracional e destrutivo, irá provocar alterações climáticas que tornarão a atual ameaça viral uma “brincadeira de crianças”, então sim, com uma tremenda e dolorosa regulação demográfica.

James Lovelock, o cientista pai da “Hipótese de Gaia” – hipótese que defende o comportamento sistémico do planeta, como se este fosse um organismo vivo capaz de se autoregular – faria da presente situação uma leitura de que se estaria perante um processo de autoregulacão planetário. O planeta estaria a resolver dois dos seus principais problemas: o da sobrepopulacão dos humanos e o das alterações climáticas. Na realidade, há sinais de abrandamento, quer do crescimento populacional (por exemplo, na região Subsariana), quer dos níveis de poluição atmosférica, constatado por satélites da NASA e da ESA nas regiões mais afetadas pela pandemia.

Por maiores que sejam os seus impactos a covid-19 não nos derrotará. Esperemos, porém, que saibamos tirar as adequadas lições da presente ameaça, de modo a que possamos prevenir ou gerir ameaças futuras, eventualmente ainda mais graves, que seguramente acontecerão caso continuemos a não respeitar a natureza. Respeitar a natureza é, por um lado, uma obrigação ética, por outro, imprescindível à nossa sobrevivência como espécie.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico