Liberdade religiosa e o bom senso católico
Os bispos portugueses pediram confinamento “na graça divina” e a “boa vontade de todos”. Podiam ter pedido bom senso a constitucionalistas radicais.
Todos sabem que há seis milhões de fiéis bahá’i no mundo — três mil dos quais em Portugal — e que o atleta olímpico Nelson Évora é um deles.
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Todos sabem que há seis milhões de fiéis bahá’i no mundo — três mil dos quais em Portugal — e que o atleta olímpico Nelson Évora é um deles.
Também todos sabem que em alguns países é arriscado ser-se bahá’i, sobretudo no Irão e no Iémen, onde os crentes são perseguidos e mortos porque acreditam que o mensageiro de deus é Bahá’u’lláh — e não o profeta da maioria.
Todos sabem, ainda, que em Portugal podemos rezar onde, como e a quem queremos — como podemos não rezar.
E, claro, todos sabem que a Igreja Católica portuguesa “fechou” as missas cinco dias antes de o estado de emergência ter sido declarado.
A 13 de Março, a Conferência Episcopal Portuguesa determinou — e bem — que os padres suspendessem a “celebração comunitária” das missas “até ser superada a situação de emergência” causada pela covid-19. Sensatos, os bispos deram uma sugestão prática aos fiéis: “Permaneçamos em oração pessoal e familiar confinados na graça divina e na boa vontade de todos.” Além disso, a 2 de Março — duas semanas antes do estado de emergência — o topo católico tinha recomendado “prudência” nas missas, sugerindo que se comungasse na mão e não se fizesse o “gesto da paz”.
Como ateia com pedigree secular, gostei de ver o bom senso da hierarquia católica portuguesa. Há argumentos para defender um estado de emergência mais leve, como há para defender um estado de emergência mais cedo. Mas não encontro um único para defender que rezar “ao vivo” é um bem de primeira necessidade e que proibi-lo limita a liberdade religiosa.
O que tem isto a ver com os bahá’i e Nelson Évora? Como sei que ele lê jornais, imaginei o atleta a ler os argumentos de que o estado de emergência português limita a liberdade religiosa, tese defendida por Jorge Bacelar Gouveia, catedrático de Direito, advogado e reputado constitucionalista. Jair Bolsonaro e Donald Trump, gente de má companhia, concordam.
Há dias o Presidente do Brasil criticou os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro por “medidas absurdas” como fechar centros comerciais e “até querem fechar a igreja”: “Onde já se viu? É um direito constitucional”, disse na televisão. E esta semana, o Departamento de Justiça norte-americano pôs-se do lado dos religiosos radicais. A Temple Baptist Church de Greenville, na região das plantações de algodão do Mississipi, processou o governo local acusando-o de ter violado os “direitos individuais” dos crentes: as missas são em regime de drive-in, uma originalidade da pandemia, o que, em teoria, não contraria o dever de confinamento. O problema, dizem as autoridades de Greenville, é que os fiéis saem dos carros.
Não é preciso falar dos judeus queimados no século XV no Terreiro do Paço, a praça do poder português. Nem de Marquês de Pombal, que “em 1759 decretou a expulsão da ordem jesuíta do império, proibindo qualquer comunicação, verbal ou escrita, entre jesuítas e portugueses”, escreve Kenneth Maxwell em Pombal – Paradox of the Enlightenment (Cambridge University Press, 1995), processo que resultou na “expulsão dos jesuítas de toda a Europa católica e na proibição da ordem pelo próprio Papa” Clemente XIII. Maxwell também conta como o padre Gabriel Malagrida foi queimado nesta altura por ter escrito o panfleto Juízo da verdadeira causa do terramoto, no qual defendia que o sismo era resultado da fúria divina. Nem é preciso falar dos bolcheviques que, em 1929, proibiram a “propaganda religiosa” na Constituição russa, apagando o artigo 4.º. Com isso, conta Victoria Smolkin, professora de História na Universidade de Wesleyan, Connecticut, no livro A Sacred Space is Never Empty – A History of Soviet Atheism (Princeton University Press, 2018), as igrejas foram fechadas e destruídas. “Só em 1937, os bolcheviques fecharam mais de oito mil igrejas e prenderam 35 mil funcionários que trabalhavam na Igreja Ortodoxa”, escreve a investigadora, acrescentando que “a maior parte da hierarquia ortodoxa foi exilada ou morta”. “Em 1938, a Igreja Ortodoxa estava destruída”, resume o historiador Mikhail Shkarovskii.
Para pensar no que é limitar a liberdade religiosa, não é preciso ir ao passado. Basta pensar nos bahá’i que são perseguidos hoje. Ou, talvez um grupo mais próximo dos constitucionalistas portugueses, basta pensar nos 260 milhões de cristãos “severamente perseguidos” no mundo, dos quais milhares são mortos todos os anos. Na Nigéria foram mortos 1350 cristãos e na China foram fechadas, atacadas ou queimadas 5576 igrejas cristãs. Isto em 2019.
Os bispos portugueses pediram confinamento “na graça divina” e “boa vontade de todos” para travar a pandemia. Podiam ter pedido também bom senso aos fundamentalistas do seu rebanho.