Sírios regressam à destruição de Idlib para fugir do coronavírus

Ainda que possam ser alvos de ataques do regime, e temendo a ameaça do contágio da covid-19 nos campos de deslocados, milhares de pessoas aproveitaram um cessar-fogo para regressar às suas casas na província de Idlib.

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O que era uma tragédia humanitária anunciada - a maior de mais de dez anos de todo o conflito sírio -, com pessoas a fugir de ataques do regime de Bashar al-Assad para campos improvisados, ao frio e sem as menores condições de abrigo, está agora a ser piorada com a ameaça do novo coronavírus.

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O que era uma tragédia humanitária anunciada - a maior de mais de dez anos de todo o conflito sírio -, com pessoas a fugir de ataques do regime de Bashar al-Assad para campos improvisados, ao frio e sem as menores condições de abrigo, está agora a ser piorada com a ameaça do novo coronavírus.

Várias organizações não-governamentais puseram em marcha planos de emergência para parte da província de Idlib, uma pequena faixa de território entre as forças do regime e a fronteira da Turquia, mas avisam que se houver casos de coronavírus a situação será terrível.

Por isso, muitas pessoas que tinham saído das suas casas, em zonas em que as forças de Assad estavam próximas, escolheram regressar - segundo disse ao PÚBLICO a vice-coordenadora da missão dos Médicos Sem Fronteiras para o Noroeste da Síria, Sally Thomas, cerca de 100 mil estão a “tentar ir para casa, ou para mais perto de casa”. Mas muitas vezes, as casas já não existem. 

“As nossas vidas andam de perigo em perigo”, disse à Reuters Abu Abdo, 45 anos, que decidiu regressar à sua aldeia numa zona rural da província de Idlib. “Fugimos dos bombardeamentos, do regime, do conflito, e da sobrelotação [dos campos] e do coronavírus”, declarou. “Aqui há terra para cultivar, o ar está limpo, e não há congestionamento [de pessoas]. Mas, mesmo assim, é uma zona perigosa.” 

Um factor que trouxe alguma esperança foi um cessar-fogo entre as forças turcas, que apoiam os últimos rebeldes em Idlib, e as forças russas, que apoiam Assad. Idlib é a última zona que resiste a Bashar al-Assad, e onde se foram concentrando todos os que não quiseram ficar sob alçada do regime após acordos de cessar-fogo noutros bastiões da oposição ao longo dos últimos anos (a população mais do que duplicou para um total de três milhões de habitantes).

“As pessoas estão a aproveitar ter dias de céu azul sem bombas a cair”, comenta Sally Thomas, explicando de seguida: “normalmente quando o céu está descoberto e não está a chover, há bombardeamentos contínuos”.

A agência de notícias russa RIA dava conta de uma patrulha conjunta turca-russa na zona. O regresso de mais de 35 mil pessoas a casas deve-se a esta combinação de factores: o cessar-fogo e a ameaça do coronavírus.

A esperança é sempre limitada, porque já houve um entendimento anterior que falhou.

“Temos medo que haja uma escalada do regime de novo”, disse Fayez al-Assi, 49 anos, que tinha fugido com a família. Após dois meses e meio, decidiram voltar à sua cidade de Jabal al-Zawiya, no Sul da região. “A vida na nossa cidade, na nossa casa, é melhor que estar deslocado nestas condições”, disse.

O Inverno prolongado e a falta de abrigo para a enorme onda de pessoas a fugir dos ataques levaram a uma situação terrível para os deslocados, com várias crianças a morrer de hipotermia.

“Mesmo se houver bombardeamentos, não temos medo. Estamos habituados”, disse Zakaria Shawish, 25 anos, da cidade de Ariha, a sul de Idlib. “Ficar aqui debaixo das bombas é melhor do que estar nos campos e não ter casa.”

Sem cuidados de saúde

A maioria regressou a zonas da região ainda nas mãos da oposição, onde o estado dos serviços de saúde é ainda pior, porque o regime atacou sistematicamente hospitais, deixando a prestação de cuidados de saúde muito debilitada.

A responsável dos MSF nota que depois de nove anos de guerra e conflito, “as poucas pessoas do sector da saúde que ainda restam são boas a tratar traumatizados e feridos com meios limitados, mas uma pandemia é algo novo e precisa de uma resposta completa de saúde pública”.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, no final de 2019 menos de dois terços dos hospitais sírios estavam em funcionamento, e 70% dos trabalhadores da área da saúde tinham fugido do país desde o início da guerra, com uma revolta contra Assad que foi reprimida com violência pelo regime, em 2011. “Já há um número limitado de pessoal de saúde no país, e isto poderá ser um problema não só durante a pandemia, mas também depois”, disse Sally Thomas.

E, como em muitos outros campos de refugiados, assegurar distância social, e lavagem regular das mãos, é impossível. Pior, a falta de alimentos, de água limpa de exposição ao frio já tinham deixado centenas de milhares com saúde fragilizada: estão ainda mais vulneráveis”, disse Misty Buswell, do International Rescue Committee, com sede em Nova Iorque, à emissora pan-árabe Al-Jazeera. O grau de devastação em caso de um surto na região seria “inimaginável”.

Quase todas as 105 camas de cuidados intensivos e os 30 ventiladores da região estão já neste momento a ser usados. Falta tudo, de material de protecção a testes: há apenas um laboratório que os pode fazer. Nas últimas semanas apurou 120 resultados em 300 amostras. Recentemente recebeu 5000 amostras.

E, como disse Sally Thomas, “com o aumento de casos na Turquia, será apenas uma questão de tempo até o vírus entrar nos campos”.

Mazen Gharibah, investigador na London School of Economics, sublinhou que a atitude do regime não vai mudar de um dia para o outro: “Não podemos partir do princípio de que o regime, que há três semanas atacava sistematicamente os hospitais, vá dar a esses hospitais equipamento médico na próxima semana”.