Tudo o que não queremos é voltar à normalidade

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“As finanças como jogo de azar e a deslocalização tornam-se intoleráveis. Isto implica discutir os privilégios, mas uma revolução é o mínimo indispensável para dizer que o futuro não será dramático, se começarmos já.” Paolo Flores d’Arcais, filósofo italiano

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“As finanças como jogo de azar e a deslocalização tornam-se intoleráveis. Isto implica discutir os privilégios, mas uma revolução é o mínimo indispensável para dizer que o futuro não será dramático, se começarmos já.” Paolo Flores d’Arcais, filósofo italiano

“Encheram-nos de palavras”

Alberto Fernández prolongou esta semana a quarentena na Argentina até 26 de Abril e defendeu as políticas do isolamento para combater a pandemia de covid-19 apesar das consequências económicas num país que já vinha de uma profunda crise com o seu antecessor, Mauricio Macri. “Que ninguém pense que por cuidar da saúde estamos a descuidar o futuro dos argentinos”, afirmou o Presidente da Argentina, num discurso, esta semana. “Encheram-nos de palavras e deixaram-nos na miséria. Nós mostramos o melhor que somos como povo,” acrescentou. Enquanto Jair Bolsonaro, no Brasil, se preparava para despedir o seu ministro da Saúde no meio da pandemia porque este escolheu o lado da ciência (“resolveremos a questão da Saúde no Brasil para tocar o barco”), e Sebastián Piñera, no Chile, defendia indultos para militares condenados por violações de direitos humanos, o homólogo Fernández explicava aos seus cidadãos que a economia argentina “passou muito maus momentos”, mas está no caminho certo, mesmo tendo em conta os efeitos que o coronavírus irá ter no futuro próximo de todo o planeta e na Argentina sem excepção. Mesmo assim, o chefe de Estado sublinhou: “Não vamos recuperar a nossa dignidade se deixarmos os nossos compatriotas cair na morte e na doença.”

Junta-se a fome à vontade de comer

Femi Fani-Kayode é um antigo ministro da Aviação nigeriano que esta semana lançou um aviso ao Governo da Nigéria, porque se se pode achatar a curva da pandemia mandando as pessoas para casa, não se pode parar aí. “Se se insiste em prender as pessoas, tem de se lhes dar de comer”, escreveu, numa verdade que, de tão de La Palisse, amiúde acaba esquecida. No seu tweet, Fani-Kayode enfatizou: “Se não se lhes dá comida e se se insiste na quarentena, então está-se a provocar uma revolução que nos pode consumir a todos. As pessoas estão com fome!” Com quase metade da população a viver em extrema pobreza, não admira que uma sondagem publicada esta semana pela BBC refira que 72% dos nigerianos estão preocupados com a quarentena, principalmente por temerem que não haja comida suficiente para os pobres (40%) ou por acharem que as pessoas irão morrer de fome (21%), sendo que apenas 13% está principalmente preocupada com as dificuldades económicas que esta crise epidémica trará. Como escreve Patrick Okigbo, “o Governo não se pode limitar a fechar as cidades e afastar-se”. No entanto, pode um Governo que nem consegue financiar o Orçamento do Estado arranjar dinheiro para ajudar os seus cidadãos obrigados a ficar em casa?

Revolução Francesa

Quando a classe dominante juntou a sua voraz capacidade de acumular riqueza a uma incompetência galopante que levou a uma crise orçamental, as massas que morriam à fome saíram do seu torpor e perceberam que tinham um trunfo que não estava ao alcance do seu inimigo de classe, eram mais, muitos mais. E com isso aconteceu a Revolução Francesa. É certo que “a coisa mais notável da França pós-revolucionária é que, apesar de toda a conversa de ‘liberdade, igualdade, fraternidade’, acabou por ser mais desigual que o Antigo Regime”, mesmo assim. Ryan Cooper escreve esta semana na The Week sobre a tradução em inglês do último livro de Thomas Piketty (Capital and Ideology), obra de política económica de mais de mil páginas que “é um estudo essencial tanto de onde vimos como dos dois possíveis caminhos a seguir: se poderemos criar um futuro melhor para toda a sociedade humana e as possibilidades negras que virão se falharmos nesse intento”. Piketty lembra neste livro que a distopia da desigualdade não é um processo automático, mas uma escolha: “A desigualdade não é económica nem tecnológica; é ideológica e política”. Ou seja, no centro está o homem e os seus argumentos e “a ideologia em si pode e muitas vezes é um factor determinante na história”.

“Normalidade”

A gigantesca fortuna de Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, cresceu 24 mil milhões de dólares nos últimos quatro meses, enquanto o fundo soberano de investimento da Arábia Saudita adoptou um “misto de oportunismo e estratégia” para melhor poder aproveitar a carniça das empresas fustigadas em áreas como os cuidados de saúde, tecnologia e logística. Como refere Eliane Brum no El País, “as grandes corporações já começam a movimentar-se para garantir o controlo do que está para vir”. Numa semana em que morreram Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda, dois dos maiores escritores latino-americanos, as palavras de Fidel Castro, cuja revolução serviu de farol a muita literatura do século XX, ressoam nas lajes do isolamento a que estamos votados: os sinos que dobram hoje pelos mortos, dobrarão amanhã pela humanidade se esta não for suficientemente sábia para se salvar a si própria. E no meio desta pandemia, mesmo com a certeza de haver muita gente sábia, a humanidade parece suficientemente estúpida para sair dela da mesma forma que nela entrou, acelerando impávida em direcção ao desastre. Por isso, como refere Brum, “o pior que nos pode acontecer depois da pandemia é precisamente voltar à ‘normalidade’.”