Proibição da pesca lúdica coloca mariscadores da ria Formosa no fio da navalha

Mais de uma centena de famílias já pediu apoio social à câmara de Olhão. Polícia Marítima aperta a vigilância, mas não há registo de crimes de desobediência à autoridade.

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Filipe Farinha / Stills (colaborador)

O azar parece perseguir Carlos Fernandes, mariscador sem viveiros. Na semana passada, quando regressava da faina, foi apanhado pela Polícia Marítima com 3,9 quilos de lingueirão. Mas como a pesca lúdica está proibida, logo concluiu: “Vou ser multado.” O barco encosta ao cais de Olhão. A companheira, Cláudia Fernandes, sai com o balde do marisco e estuga o passo a caminho de casa. O polícia aproxima-se e procede de modo convencional: pede a identificação e documentação do barco. “Fui pescar para comer”, diz o mariscador, prevendo a previsível pergunta sobre o motivo da deslocação ao mar. A pesca só está aberta a profissionais e ele não está nessa categoria — é apenas mais um “profissional” da precariedade.

Carlos Fernandes, de 42 anos, está fora do sistema. “Não consigo arranjar um trabalho regular, vou à maré na terra vadia [fora das zonas dos viveiros] desde que me casei, há 18 anos.” Por uma ou duas vezes, diz, fez o pedido para obter cartão profissional de mariscador. “Veio recusado.” A emissão de títulos, informou a Secretaria de Estado das Pescas, está limitada aos recursos disponíveis.

Recentemente tentou mudar de actividade, concorrendo a um lugar na câmara. Ao ser seleccionado para desempenhar as funções de fiel de armazém, achou que a sorte, finalmente, lhe tinha batido à porta. Mas quando chegou à entrevista perguntaram-lhe: “Tem carta de condução?” Perante a negação, disseram que “nada feito”. A mulher está desempregada e tem três filhos menores.

No concelho de Olhão os mariscadores contam-se às centenas, agora de quarentena forçada pela lei da proibição da pesca lúdica. Muitos são aposentados, a batalhar no mar ou na ria por um balde de peixe que sirva de suplemento às magras reformas que auferem. Outros estão bem pior. “Sou mariscador, porque não encontro alternativa e tenho uma família para alimentar”, repete Carlos Fernandes, lembrando que nunca teve trabalho certo. Desloca-se à ria com a mesma facilidade com que o agricultor vai à horta colher salsa ou coentros e a natureza costuma ser generosa. O que vem à mão é marisco ou peixe, mas nem sempre as coisas correm bem. “Nos últimos dias tem estado vendaval, não dá nada”, lamenta. O que sobra do consumo doméstico, diz, oferece ou vende para “pagar as contas da casa”.

“A ria é um desenrasca, nas situações mais difíceis”, confirma o presidente da câmara, António Pina.

O medo da multa

Na quinta-feira da passada semana, Carlos Fernandes sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés quando avistou a autoridade marítima ao chegar da faina. “Só pode haver deslocações em terra, ou no mar, por motivos profissionais justificados”, avisaram. O agente da autoridade anotou os dados pessoais e comunicou: “Receberá em casa a notificação.” Pelo tom da conversa deduziu que iria ser multado. “O azar anda sempre comigo”, desabafa.

O casal vive do subsídio de desemprego de Cláudia Fernandes, que ronda os 400 euros por mês. “Tem-nos valido o apoio da minha família, até a minha avó ajuda, para que as crianças não passem fome”, diz a mulher.

Não é a primeira vez que Carlos Fernandes pisa o risco na luta pela sobrevivência. Há cerca de dois anos foi detectado a navegar à noite, num pequeno barco de recreio: “Levei com a multa mínima, 250 euros.” Apresentou estado de pobreza, pedindo que lhe fosse perdoada a coima, mas não teve acolhimento. “Estou ainda a pagá-la, a prestações”, diz. Agora, teme que venha aí mais um castigo. “Não sei como pagar, se me aparecer outra multa”, lamenta.

A Autoridade Marítima Nacional (AMN), questionada pelo PÚBLICO, esclareceu que “não detectou qualquer infracção aplicável à pesca lúdica no contexto do actual estado de emergência, mais concretamente por desobediência” na área do comando da Polícia Marítima de Olhão. O gabinete de Imagem e Relações Públicas da AMN destaca ainda que tem “reforçado as acções de patrulhamento na orla costeira”, com o objectivo de garantir a segurança no espaço sob a sua jurisdição. O acesso às ilhas-barreira só é permitido aos residentes, ou a terceiros por motivos profissionais.

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Carlos e Cláudia Fernandes viviam numa barraca na ilha de São Lourenço [Olhão]. “Sempre me habituei a andar com os pés no lodo da ria [Formosa]”, recorda Cláudia. Há cerca de quatro anos, a casa foi derrubada, porque estaria em risco. O plano de requalificação do litoral determinou o derrube da habitação. Tiveram direito a realojamento, num apartamento na cidade de Olhão, com renda social. A mulher, de 34 anos, no ano passado trabalhou no serviço de limpeza da ilha da Armona. Ao fim de sete meses, terminada a época balnear, foi mandada para o desemprego. “Estava previsto voltar ao trabalho no dia 1 de Abril, mas agora está tudo num impasse”, observa.

O apelo do mar

Em Vilamoura, Hélio Quintas é profissional de hotelaria. Por desporto faz caça submarina. O restaurante na marina de Vilamoura, onde trabalha, encerrou, como sucedeu a quase todos os estabelecimentos da zona. Em tempo de paragem forçada, não lhe faltariam ocasiões para a pesca desportiva, se não tivesse proibida. No passado fim-de-semana, o vício apertou e não resistiu ao chamamento. De carro foi até à praia dos Olhos d’Água (Albufeira) ver o mar, mas levou consigo os apetrechos. “Se as pessoas podem sair à rua para passear o cão, eu também posso ir passear o balde.” A zona é considerada rica em peixe e o lance resultou. “Trouxe peixe que deu para três dias e ainda ofereci aos amigos.” Filho de pescador, cumpre a tradição familiar: “Não faço vida do mar, mas o mar faz parte da minha vida”, remata.

Mas o acesso ao mar continua a ser controlado e é previsível que assim continue. Ana Cristina Guerreiro, delegada regional de Saúde, alertou ontem, durante o balanço diário sobre a pandemia, para o facto de a próxima época balnear poder estar comprometida: “Apesar de termos aqui a praia à porta, e de ser tão apetecível, quase de certeza que vão haver algumas restrições [no movimento das pessoas].” E, durante o estado de emergência, acrescentou, “as pessoas têm mesmo que cumprir [a proibição] de ir à pesca no barco pessoal”.

Por sua vez, o presidente da Administração Regional de Saúde (ARS), Paulo Morgado, defendeu que é preciso “não baixar a guarda” nas medidas preventivas. No entanto, manifestou a opinião de que o Algarve se encontra numa “situação estável”, com 304 casos de contaminação. Dos 24 doentes internados, cinco encontram-se em unidade de cuidados intensivos.

António Pina reconhece que as situações de pobreza no concelho agravaram-se, desde que foi declarado o estado de emergência. “Mais de uma centena de famílias já vieram pedir ajuda à câmara, queixando-se que não têm para comer.” O município respondeu, fazendo acordos com as instituições particulares de solidariedade social (IPSS), “para garantir almoço e jantar” aos mais desfavorecidos. O trabalho, diz, conta com apoio de alguns voluntários, e foi criada uma linha especial para o apoio social.

O sector da pesca, neste concelho de Olhão, continua a ter grande relevância económica, apesar da decadência da indústria conserveira. A produção de marisco é que tem vindo a subir.

Tanques vazios

A cooperativa Formosa, com cerca de duas centenas de viveiristas associados, funciona como uma central de distribuição de amêijoas, ostras e berbigão para toda a região, e para os mercados de Lisboa. Até há cerca de um mês, diz o presidente, José Florêncio, “estavam sempre a rodar 400 a 500 quilos de marisco, distribuídos por sete tanques”. A procura caiu a pique: “Temos só um tanque, com 50 a 60 quilos.” A situação repete-se por todo o país.

O comerciante e viveirista Gualter Teixeira estima entre 1500 a 2000 o número das famílias que se dedicam à apanha do marisco na ria Formosa. “Só 10% é que possuem cartão de mariscador”, enfatiza. A empresa de que é dono factura uma média de 2,5 a 3 milhões euros/ano. O volume de negócios, até há cerca de um mês, andava pelos 20 mil euros/dia. “Agora facturo 500 a mil euros/dia.” Quando lhe aparecem a vender ameijôas, sabe que não vai ter consumidor imediato “Compro para pôr nos meus viveiros, à espera que venham melhores dias.” O preço médio é de cinco euros/quilo.

Todo o sector da pesca artesanal vive uma situação periclitante com a diminuição do preço em lota. A União Europeia prepara-se agora para responder a um pedido de “medidas extraordinárias e urgentes” feito por Portugal para manter a viabilidade do sector. A ajuda, vinda a partir da revisão do regulamento do Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas (FEAMP), deverá ser “aprovada na próxima semana, talvez no dia 24”, adiantou ao PÚBLICO o gabinete do ministro do Mar, Ricardo Serrão Santos. O dinheiro resulta da antecipação do pacote financeiro do FEAMP que estava alocado a Portugal. Por outro lado, foi esta semana autorizado o aumento do montante da ajuda às empresas de 30 mil para os 120 mil euros, ao longo de um período de seis anos.