Uma nova etapa através de um SNS Dual

Devemos ser inteligentes e aprender com os erros e sucessos passados. O tempo, o esforço e as vidas que ganhámos devem servir para preparar o longo caminho que temos pela frente.

A pandemia de covid-19 obrigou a uma reorganização ímpar do nosso modo de vida e das nossas sociedades, particularmente pelas medidas de distanciamento físico. Estas são justificadas pela impossibilidade de qualquer sistema de saúde ser capaz de responder a um problema de saúde de tal magnitude num tão curto espaço temporal. 

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A pandemia de covid-19 obrigou a uma reorganização ímpar do nosso modo de vida e das nossas sociedades, particularmente pelas medidas de distanciamento físico. Estas são justificadas pela impossibilidade de qualquer sistema de saúde ser capaz de responder a um problema de saúde de tal magnitude num tão curto espaço temporal. 

Contudo, a implementação tardia destas medidas conduziu, em muitos casos, ao colapso da prestação de cuidados de saúde. A sua antecipação deu espaço e tempo para uma melhor preparação dos sistemas de saúde. Em ambos os cenários, a resposta à covid-19 secundarizou a prestação regular de cuidados de saúde, sendo que, no segundo, o impacto sobre a capacidade para manter serviços de saúde gerais é menor.

As medidas de distanciamento físico não são eternas e as suas consequências sobre a economia (incluindo os efeitos decorrentes do circulo vicioso pobreza/doença), organização social e saúde mental devem ser mitigadas. O seu afrouxamento deve pesar cuidadosamente estes efeitos, a dinâmica da epidemia e a capacidade do sistema de saúde para absorver novos picos. Por outro lado, o adiamento da prestação de cuidados de saúde conduzirá a perdas significativas na saúde e bem-estar das populações ainda não totalmente conhecidas. 

Não existindo respostas simples ou rotas predefinidas, é obrigatório que todos os países readaptem e reequilibrem os seus sistemas de saúde. Em Portugal, a decisão atempada de implementar as medidas de distanciamento deu-nos tempo. Ao contrário de outros países, não sofremos uma rutura da prestação de cuidados e exaustão generalizada dos profissionais de saúde, sendo menos problemática a transição para um novo modelo de cuidados específicos para a covid-19 e cuidados gerais para a restante população: um Serviço Nacional de Saúde (SNS) Dual.

O sucesso desta nova abordagem dependerá da capacidade para controlar a epidemia, estabilizar a resposta específica e assegurar os cuidados gerais. O SNS português não entrou nesta pandemia livre das suas virtudes, dos seus vícios ou dos seus problemas. Também não seria expectável que a pandemia os viesse a resolver. Contudo, para assegurar o suporte a esta estratégia dentro e fora do sistema de saúde, será necessário reforçar o modelo de gestão, a transparência e a comunicação. 

O controlo da epidemia deve ser assegurado pelo gradualismo do afrouxamento das medidas de mitigação, podendo ser geográfica e populacionalmente diferenciado, pela universalização da utilização de equipamentos de proteção individual, e pela revisitação e reforço das medidas de contenção. Os serviços de saúde de proximidade, com o apoio das forças policiais e serviços municipais, devem ser capacitados para a estratégia “testar, localizar e isolar”. 

O SNS Dual exige a definição da rede de prestação covid-19, incluindo cuidados de saúde primários, hospitais e cuidados extra-hospitalares. Esta clarificação permitirá responder de forma planeada e ordenada, alocar os recursos necessários à covid-19 e libertar os restantes para a resposta genérica. Nesta linha, muitas instituições poderão ficar totalmente disponíveis para as necessidades gerais, referenciando adequadamente doentes suspeitos para as instituições capacitadas. As instituições em modelo dual definirão circuitos autónomos, permitindo a segregação de doentes e profissionais. Por outro lado, deverão manter capacidade em estado de prevenção para eventuais picos de procura. As novas tecnologias, a integração de cuidados com o setor social e o aprofundamento de novos modelos organizacionais, como os Centros de Responsabilidade Integrados, potenciarão o acesso a cuidados de saúde gerais.

Evidentemente, este caminho depende da disponibilidade generalizada de testes e de equipamentos de proteção individual. Certamente, será desejável evitar uma política de aquisições e distribuição de bens do tipo “salve-se quem puder”, ficando as instituições reféns da boa vontade da comunidade.

Existirá tempo para avaliar a resposta nacional a esta pandemia. Não é esse o momento. Contudo, devemos ser inteligentes e aprender com os erros e sucessos passados. O tempo, o esforço e as vidas que ganhámos devem servir para preparar o longo caminho que temos pela frente. 

Uma nota final. A experiência demonstra-nos que em tempo de crise económica, a despesa pública em saúde sofre grandes cortes. Saibamos desta vez compreender que essa não é a solução. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico